• 18 dez 2018

    O que tem a ver o AI-5, Constituição, os assassinatos de Marielle e camponeses e a extradição de Battisti?

17 de dezembro de 2018

Nas últimas semanas, o governo golpista comemorou os 30 anos da Constituição de 1988; os meios de comunicação lembraram os 50 anos do Ato Institucional nº 5; decorreram 9 meses do assassinato de Marielle; os camponeses Rodrigo Celestiano e José Bernardo da Silva foram assassinatos; Temer assinou o ato de extradição de Battisti. Essa sequência de acontecimentos está distante no tempo. O AI-5 foi decretado, em 13 de dezembro de 1968, pela junta militar, sob o comando do general Costa e Silva. Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição, pós ditadura militar. A morte de Marielle, dos líderes do MST e a decisão de extradição de Battisti se deram sob a ditadura civil de Temer. No dia 14 de março de 2018, Marielle e seu motorista foram fuzilados.  Os camponeses, assassinados em 8 de dezembro.

A distância entre o AI-5, que recrudesceu o regime militar, e a reconstitucionalização correspondeu a duas décadas. Sob a égide do regime democrático-burguês, dois governos foram destituídos pela via do impeachment. Collor de Mello, primeiro presidente eleito, caiu depois de 4 anos da Constituição. E Dilma Rousseff, depois de 28 anos. Na solenidade dos 30 anos, Temer, Bolsonaro e Toffoli ressaltaram a durabilidade do regime democrático, portanto, do respeito à Constituição. Não se reconhece o impeachment como um instrumento para um golpe de Estado, uma vez que está previsto no ordenamento jurídico. A cassação do voto popular, que deu a maioria ao governo destituído, é tida como democrática. Basta a formação de uma oposição majoritária, consoante com os interesses das frações burguesas que detêm o poder econômico, para se derrubar o presidente eleito. O impeachment de Dilma tem a particularidade de a ampla frente golpista se desfazer de um governo nacional-reformista, escorado em um partido não-orgânico da classe capitalista, que é o PT. Engendraram um crime de responsabilidade fiscal para justificar a cassação do voto de 54 milhões brasileiros. Mas, para isso, foi preciso desmontar o PT, por meio de dois grandes espetáculos judiciais – “mensalão” e “petrolão”. Finalmente, para inviabilizar a volta do PT à presidência, pela via das eleições, prenderam Lula.

Temer e seu partido MDB estavam tão comprometidos com a corrupção quanto Lula e o PT. A diferença é que os crimes de Temer foram revelados e comprovados, o que nem sempre se passou com o PT. Não houve denúncia maior que as transações de Temer com a JBS. No entanto, o Congresso Nacional, que derrubou Dilma, usando, inclusive, as denúncias de corrupção ao PT, livrou Temer da ação penal. Aécio Neves, ex-governador de Minas Gerais, ex-presidente do PSDB, ex-senador e, agora, eleito para a Câmara de Deputados, também foi flagrado em suas negociatas com os donos da JBS. Grandes figuras da República foram denunciadas pelo Ministério Público, e continuam a decidir sobre a política do País. O presidente recém-eleito se valeu da moralidade para arrastar as massas. Ainda não tomou posse e já foi questionado sobre uma transação entre Fabrício Queiroz – assessor do deputado Flávio Bolsonaro – e a primeira dama. O fato obscuro, até agora, não foi esclarecido. Por todos os poros da política burguesa e das instituições do Estado, destacando entre eles o Congresso Nacional, transpira a podridão.

A utilização da corrupção para derrubar um governo e eleger outro, na realidade, é uma máscara aos reais problemas que emergem da crise estrutural do capitalismo.  Trata-se da necessidade da burguesia descarregar a crise econômica sobre a maioria explorada. Evidentemente, as frações burguesas também se digladiam em torno às respostas econômicas. A tendência dos explorados de reagir aos ataques e as divisões interburguesas acabam por exigir a centralização autoritária do Estado.

Temer, que exerceu a ditadura civil de transição, e o governo de Bolsonaro, organizado por militares, puderam comemorar os 30 anos da Constituição e jurar-lhe lealdade sem que precisassem vestir a máscara de democratas burgueses. Ocorre que já não existe a Constituição de 1988. Não apenas porque foi desfigurada com mais de 90 alterações, mas, principalmente, porque, sob sua guarda, foram desfechados dois golpes de Estado. E, agora, as massas, sem terem a mínima consciência do que estavam fazendo, elegeram um presidente, que tomou a liberdade de montar um governo militar, sem que precisasse disfarçá-lo com uma roupagem civil.

Os partidos, que fizeram a transição da ditadura militar para a democracia, e que se encarregaram de elaborar a Constituição, como é o caso do PSDB, MDB e DEM, caíram de joelhos diante do governo militarizado e fascistizante de Bolsonaro. Assim ocorre porque a burguesia nacional, ultra dependente do imperialismo, foi e é incapaz de fundar uma democracia livre da tutela das Forças Armadas. Não conseguiu superar o caráter oligárquico do Congresso Nacional e dos demais poderes do Estado. A história da República está marcada por golpes de Estado e governos ditatoriais. Criou-se a ilusão de que os 21 anos de regime militar  foram um purgatório pelo qual o País tinha de passar para forjar um verdadeiro “Estado de Direito Democrático”. O reformismo petista contribuiu consideravelmente para a montagem dessa impostura, tanto no plano ideológico, quanto no prático.

O golpe de Estado de 2016 liquidou de vez a Constituição que serviu à redemocratização. O governo usurpador e o Congresso Nacional golpista impuseram a reforma trabalhista e lei da terceirização, contra a vontade da imensa maioria da população. O PT e seus aliados reclamaram da falta de legitimidade do governo não-eleito, e pleitearam a volta da democracia, reduzindo-a às eleições. A política de colaboração de classes e de subordinação dos sindicatos à democracia burguesa oligárquica se ergueu como trava à organização independente e à edificação da democracia operária (assembleias, comitês de base, comissões fabris, autodefesa, etc.). A defesa do reformismo burguês e pequeno-burguês da democracia pressupõe o desarmamento político, ideológico e organizativo da classe operária, de forma a canalizar a luta de classes para as instituições burguesas, e frear a ação direta das massas.

É nessas condições que a burguesia se unificou em torno ao golpe de Estado. E acabou, mesmo contra sua vontade, se unificando em torno à candidatura de Bolsonaro. Essa virada para a ultradireita e para a centralização autoritária, como se vê, foi ditada pelas condições objetivas da crise econômica, que afetou gravemente a governabilidade da administração petista, e que se prolongou no governo de Temer.

A solenidade dos 30 anos da Constituição ficou esmaecida, sob um governo que resultou de um golpe, em fim de mandato, e sob um presidente recém-eleito, que se valeu do voto popular para constituir um governo militar. Não deixou, porém, de transparecer o temor de setores da burguesia quanto aos riscos que a democracia corre.

Mais significativo foi a lembrança dos 50 anos do AI-5. Nesse caso, não houve solenidade oficial. A divulgação da data coube à imprensa, cujo objetivo principal foi o de transparecer a preocupação com o que poderá fazer Bolsonaro a respeito da liberdade de expressão. As críticas foram bem dirigidas e restritas. Mostraram que a dissolução do Congresso, a intervenção sobre a justiça, a implantação da censura e a suspensão do habeas-corpus deram ao regime militar um caráter de ditadura, descaracterizando assim o golpe de 1964. As prisões, torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres se deveram, portanto, à dissolução do “Estado de Direito”. É claro que não poderiam faltar comentários contrários à luta armada das esquerdas.

O que se passou em outubro de 1968 foi que a ditadura militar, que assumiu inicialmente o formato de uma ditadura bonapartista, se transformou em uma ditadura tipicamente fascista. O general Castelo Branco não pôde cumprir sua promessa de estabelecer um governo militar temporário, portanto, transitório. Governou se valendo de atos institucionais, com os quais dissolveu os partidos, e criou o bipartidarismo, suprimiu eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos, subordinou o Congresso Nacional ao Executivo, deu à Justiça Militar amplos poderes e criou a Lei de Segurança Nacional. A ditadura de Castelo Branco, no entanto, não conseguiu esmagar o movimento de massa, protagonizado, em grande medida, pela juventude estudantil. Na clandestinidade, a UNE reagiu à Lei Suplicy de Lacerda, que extinguia as organizações independentes e as substituía por outras ditadas pelo MEC, bem como ao Acordo MEC-Usaid.

O movimento embrionário de resistência à ditadura culminou na “Passeata dos 100 mil”, em junho de 1968, brutalmente reprimida. Em outubro, a ditadura cercava o XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, realizando prisão massiva. Ao lado desses acontecimentos, os metalúrgicos começaram a se reorganizar. Em abril, os operários da Belgo-Mineira deram o primeiro passo na luta contra o rebaixamento salarial, a destruição de direitos e pelas liberdades políticas. Foi, porém, a greve com ocupação de fábrica na Cobrasma, em Osasco, que o confronto alcançou uma dimensão insuportável ao general Costa e Silva. Os militares cercaram os grevistas, ameaçaram dar um banho de sangue e, finalmente, centenas de operários foram presos. A ditadura não tinha como conviver com a crescente contestação operária e estudantil.

O AI-5 se tornou uma arma, em primeiro lugar contra o movimento antiditadura e antigolpe de 1964. A junta militar não poderia ser limitada por nenhum instrumento do Estado e das organizações civis da própria burguesia, como é o caso da imprensa, diante da luta de classes que se potenciava. Essa situação criou um terreno fértil à resistência armada, assumida pela maioria das correntes de esquerda, que não se deram conta que o método foquista de combate se dava à margem da classe operária.

O governo seguinte, do general Médici, aproveitou para destruir fisicamente os quadros partidários e as direções sindicais que passaram ou não à luta armada. Os traços fascistas da ditadura militar foram às últimas consequências, valendo-se do método da guerra civil contra os adversários, que não possuíam capacidade de travar o combate nesse campo.

A redemocratização, que culminou com a nova Constituição de 1988, não se baseou nessa experiência – nem poderia se basear – para pôr fim à tutela das Forças Armadas sobre a democracia. Essa tutela foi recolocada com o golpe de 2016 e, agora, se manifesta mais amplamente com a eleição de um político oriundo da classe média que, na condição de ex-militar, conservou as noções fascistas, germinadas no período da ditadura militar.

Não se podem desvincular acontecimentos recentes, como o assassinato de Marielle, dos camponeses líderes do MST, e a ordem de extradição de Cesare Battisti. Marielle foi fulminada quando ocorria a intervenção das Forças Armadas no Rio de Janeiro, a mando de Temer. Até hoje, não se tem uma investigação com resultados palpáveis. Pouco se divulgou sobre o fuzilamento de Celestino e Bernardo da Silva. Encapuzados, simplesmente, invadiram o acampamento D. José Maria Pires, e descarregaram suas armas no alvo premeditado. Mais dois camponeses, que desafiaram os latifundiários entrarão nas estatísticas de assassinatos no campo. São esses acontecimentos da luta de classes que medem o grau da democracia existente no País. O que quer dizer que indicam um caminho pelo qual a burguesia recorrerá mais amplamente para defender seu Estado e a grande propriedade privada dos meios de produção.

A extradição do italiano Battisti é uma ação típica de uma ditadura, que comunga com um governo de um país que deu origem ao fascismo e que nunca foi capaz de erradicá-lo definitivamente. A busca por Battisti é antiga e passou por vários governos. Mas, no momento, a Itália é governada pela direita fascistizante. O governo do PT, na gestão de Lula, fez o mínimo de um governo que se reivindica democrático. Battisti participou da luta armada na década de 1970, portanto, há 48 anos, incorrendo no erro de outras organizações foquistas, que acreditaram no terrorismo como método de violência individual, possível de derrotar a burguesia à margem do desenvolvimento político da classe operária. O foquismo – o terrorismo individual – sempre foi rejeitado e combatido pelo marxismo, porque é a negação do partido revolucionário no processo de transformação do capitalismo em socialismo. Os crimes imputados a Battisti pela Justiça italiana são de caráter político, mas transformados em crimes comuns. Essa falsificação tem servido aos governos italianos para manter a perseguição sistemática, durante tantos anos, que se tornou uma questão de vingança de classe da burguesia. Temer, no apagar de seu governo, pondo-se de acordo com Bolsonaro, fez o trabalho sujo, típico de uma ditadura civil, como a qualificou o POR.

É necessário lembrar que a ditadura militar no Brasil torturou, matou e desapareceu com os corpos de centenas de adversários. Agora mesmo, reconheceu-se a ossada de Aluísio Palhano, cujos restos mortais foram enterrados clandestinamente em uma vala comum, no município de Perus. Os torturadores e assassinos receberam como prêmio a anistia decretada pela própria ditadura, com a conivência daqueles que iriam dirigir a redemocratização. O reconhecido torturador coronel Ustra foi inocentado pela mesma justiça que hoje entrega Battisti a um governo fascistizante. Não houve democracia alguma capaz de condenar sequer um militar e policial pelas barbaridades que cometeram contra os presos políticos indefesos.

Esse percurso deve alertar a classe operária e sua vanguarda sobre o caminho que poderá tomar o governo militar de Bolsonaro. A experiência histórica mostra que o bonapartismo é a antessala do fascismo.

Que os assassinos de Marielle, Celestino e Bernardo sejam imediatamente apresentados e punidos!
Que se revogue a extradição de Battisti!
Organizemos, desde já, a luta de resistência ao governo militar, ditatorial e fascistizante de Bolsonaro!
Lutemos sob a bandeira da democracia operária e de sua independência de classe!