• 31 out 2019

    Confluência de acontecimentos expõe o avanço da crise capitalista na América Latina

Carta aos explorados

Confluência de acontecimentos expõe o avanço da crise capitalista na América Latina

31 de outubro de 2019

O imperialismo confiava que a eleição de Macri em 2015 era o ponto de partida para a derrocada do peronismo. Concluiu seu mandato com a Argentina mergulhada na crise econômica e social mais profunda do que a do período de Cristina Kirchner. Greves gerais e manifestações massivas se opuseram à política econômica, francamente antinacional e antipopular.

Macri prometeu que inauguraria uma nova etapa da democracia e do desenvolvimento econômico do País. E que o povo argentino o ajudaria a cumprir a virada histórica. O contrário se passou. Macri, imediatamente, submeteu a diretriz governamental aos cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI). A tarefa número 1 foi a de resolver as pendências com os credores internacionais, e garantir-lhes o pagamento dos juros e amortizações. Para isso, recorreu a novos empréstimos, agravando ainda mais o peso da dívida pública sobre o Tesouro Nacional, e, portanto, sobre a economia e a vida da maioria oprimida.

As medidas antipopulares e a recessão ampliaram e intensificaram a polarização entre a riqueza da minoria e a pobreza da maioria. A miséria atingiu um patamar muito acima dos anteriores. A classe média, que vinha, passo a passo, regredindo, foi assaltada pelo temor da pobreza, que se disseminava e dissemina sobre a população. No momento em que o custo de vida se tornou insuportável, não havia como Macri ocultar o vínculo entre a proteção do capital financeiro e o sacrifício das massas.

A certa altura da regressão econômica, ainda maior do que no período do governo Cristina Kirchner, se abriu um fosso diante do governo Macri, que iria impossibilitar um segundo mandato.  Nas eleições de 27 de outubro, a candidatura do peronista Alberto Fernández e Cristina Kirchner venceu no primeiro turno. Milhares e milhares de apoiadores se concentraram em frente ao comitê de campanha de Fernández, numa demonstração de popularidade ativa do peronismo. Os sintomas de ilusões democráticas que se avivaram em torno à volta do peronismo ao poder, no entanto, não têm como se sustentar por muito tempo. As tendências de desintegração do capitalismo e de retrocesso social não poderão ser contidas e revertidas. Trata-se de um processo que se evidenciou muito antes, e que eclodiu nos anos de 1990. As massas se chocaram diretamente com o governo Fernando de La Rúa, da União Cívica Radical. Seu sucessor, o peronista Eduardo Duhalde, não teve como estancar a crise política. A estabilização do poder da burguesia coube a Néstor Kirchner, que contou com o bom desempenho da economia mundial. A Argentina foi arrastada – como toda a América Latina – pela crise mundial iniciada em 2008. O segundo mandato de Cristina Kirchner refletiu o avanço da decomposição da economia interna. O que deu lugar para Macri ascender, apoiado na frente “Cambiemos”, retomando as diretrizes econômicas da ditadura militar, que favoreceram aos interesses de um setor da oligarquia, do capital financeiro e do imperialismo.  Os anos de kirchnerismo não levaram a uma ruptura com essa orientação. O máximo que o peronismo pôde fazer foram adaptações, a exemplo da renegociação da dívida. Manteve-se à sombra do FMI. Descarregou a crise sobre a maioria oprimida, embora tenha disfarçado a política antipopular com subsídios e assistencialismo. A eleição de Fernández pode arrefecer, provisoriamente, o curso de enfrentamento das massas, que vinham se ampliando, em resposta a Macri. Não há como os peronistas, que encarnam a caricatura do nacionalismo burguês, praticarem uma política econômica que contrarie o capital financeiro, os monopólios e o imperialismo. A brevidade da experiência dos explorados com o novo governo dependerá da capacidade da burocracia sindical de convencer a classe operária e demais trabalhadores a se conformarem com a política de conciliação de classes.  Dependerá, por outro lado, da capacidade da vanguarda revolucionária de expressar a revolta latente do explorados, que não se dissolveu com a polarização eleitoral.

No Uruguai, a direita conseguiu ir para o segundo turno nas eleições. Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, terá de obter o apoio dos candidatos Ernesto Talvi, do Partido Colorado, e Guido Nanini Rios, do Cabildo Aberto, para derrotar o candidato da Frente Ampla, Daniel Martínez, que obteve, no primeiro turno, 40,66%, contra 29,68% de seu opositor. A Frente Ampla, que está há 20 anos no poder, ganhou, no primeiro turno, apenas nas eleições de 2004. Não é novidade, portanto, que tenha, agora, de disputar o segundo turno. A diferença está em que obteve menor número de votos em relação às disputas anteriores (2009, 49,3%; 2014, 49,5%). A soma dos três candidatos da oposição corresponde a 53,77%. Eis por que os analistas avaliam a possibilidade de uma derrota da Frente Ampla, caso a oposição se unifique, e consiga arrastar seus eleitores a votar em Lacalle, apesar de que teve baixa votação. As dificuldades da Frente Ampla são explicadas pelo crescimento da criminalidade, o que quer dizer que aumentou a pobreza e a miséria de uma camada da população. O Uruguai atravessou o período da crise mundial, iniciada em 2008, sem sobressaltos, embora não tivesse podido manter as altas taxas entre os anos de 2004 e 2008. A Frente Ampla, porém, não conseguiu dar um passo na industrialização. Cresceu a dependência do Uruguai à economia agroexportadora. Tudo indica que não terá como garantir o padrão de vida de sua classe média no próximo período, em que desponta nova fase da crise mundial e da América Latina. A ampla manifestação massiva contra a volta da direita, e o recorde de participação nas eleições, revelam como as ilusões democráticas persistem na consciência coletiva das massas uruguaias. A ausência de um partido revolucionário estruturado abre o caminho para que o descontentamento popular seja canalizado para o apoio às frações burguesas em disputa.

As eleições na Bolívia terminaram em aguda crise política. O candidato da velha direita oposicionista, Carlos Mesa, não aceitou o resultado favorável a Evo Morales. A denúncia de fraude está na dependência da investigação da Organização dos Estados Americanos (OEA), um aparato do imperialismo norte-americano, que acompanhou as apurações. Evo fez a acusação de estar em andamento um golpe para anular sua vitória. A crise interburguesa, porém, é anterior. Pela Constituição, promulgada no governo do MAS, Evo Morales somente poderia concorrer à reeleição e nada mais. Fez uma interpretação particular e, com apoio do Tribunal Constitucional, obteve um terceiro mandato. O conflito interburguês recrudesceu em torno ao direito de concorrer às eleições do presente ano. No referendo de fevereiro de 2016, a maioria negou-lhe um quarto mandato. O Tribunal Constitucional decidiu a favor de Morales, com base na Convenção Americana dos Direitos Humanos. Com essa manobra, pela segunda vez, o governo e seus capachos passam por cima da Constituição. Sabemos que, em toda parte, as Constituições são violadas. O Brasil é um dos exemplos. É importante assinalar a violação da Constituição, porque evidencia o quanto caricatural é a democracia formal na Bolívia, e, portanto, o quanto o MAS e Evo Morales a usaram para canalizar a revolta das massas empobrecidas. Nos três mandatos, o seu governo passou da fisionomia de esquerda nacional-reformista a pró-imperialista. Assim como os demais governos dessa linhagem na América Latina, Evo contou a seu favor com os bons ventos da economia mundial e da valorização das commodities. O crescimento médio de 4,5% do PIB, desde que ocupou o poder, em 2006, embora seja baixo para uma economia atrasada, colocou a Bolívia em melhores condições do que a maioria dos países da América Latina. A seminacionalização da YPFB, e a renegociação dos contratos de exploração do petróleo e gás com as multinacionais permitiram uma maior arrecadação e favoreceram o período de crescimento do País. No entanto, as multinacionais continuaram controlando a exploração de recursos naturais, de forma que 80% do gás continua em seu poder. O capital imperialista ampliou sua penetração, sob o governo do MAS. Também nesse caso, não foi dado um só passo na industrialização do País. Para isso, Evo atendeu às pressões externas, para impor às massas as contrarreformas. A política de conciliação da burocracia da COB e a subserviência de uma camarilha de dirigentes indígenas, apoiados nos “êxitos” do governo, mantiveram a classe operária (mineiros e fabris) e uma parcela da população indígena submetidas ao governo, que se apoiou na grande propriedade privada dos meios de produção e concluiu como serviçal do imperialismo. A continuidade de Evo no poder se encarregará de colocá-lo frontalmente contra a maioria oprimida, que já vinha se deslocando do controle do MAS. O que potencia as condições para o Partido Operário Revolucionário desenvolver a estratégia própria de poder, que é a do governo operário e camponês.

Em 8 de outubro, um massivo movimento contrário às medidas do governo equatoriano, Lenín Moreno, ocupou a Assembleia Nacional. A repressão tornou a crise política ainda mais convulsiva. Lenín teve de mudar a sede do governo, e acabou selando um acordo com as direções indígenas conciliadoras (Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador – Conaie). O recuo foi uma vitória momentânea. A gravidade da situação da maioria oprimida e a marcha da decomposição econômica permanecem. O governo recuou, depois de as forças policiais terem assassinado vários manifestantes. O enfrentamento das massas às contrarreformas recrudesce a luta de classes e expõe o Estado policial. A dívida pública de 36% do PIB é um importante fator que bloqueia a economia do país. O parasitismo do capital financeiro se levanta como uma grande trava. O governo nacional-reformista de Rafael Correa se mostrou incapaz de nacionalizar a indústria petrolífera, cujo peso na estrutura econômica do País é imenso. Os conflitos entre as petroleiras e os indígenas, que têm suas terras invadidas, se potenciaram, sob o governo de Correa. Seu sucessor, Lenín Moreno, mandou às favas o nacional-reformismo, e assumiu plenamente a orientação do Fundo Monetário Internacional. O fim do subsídio aos combustíveis, que vinha sendo praticado gradualmente, se tornou o estopim do levante de outubro. O movimento, em grande medida de composição indígena, não pode expressar o programa proletário de nacionalização do petróleo, e expropriação do grande capital. Embora o levante tenha conseguido um importante vitória, fazendo o governo retroceder em suas medidas, essa limitação inviabiliza a unidade da maioria oprimida contra o imperialismo e a oligarquia equatoriana.

Em 6 de outubro, no Chile, o protesto contra o aumento do preço das passagens do metrô desencadeou uma revolta popular contra o governo. Sebastián Piñera revogou a medida, diante da fúria das massas. A morte de 23 manifestantes, e centenas de prisões, não quebraram a disposição dos explorados de irem às ruas. O aumento das passagens não passou de um pingo no oceano das precárias condições de existência da maioria oprimida. O governo ultraliberal, francamente pró-imperialista, sintetiza, anos a fio, contrarreformas impostas desde a ditadura fascista de Pinochet. Os governos democratizantes do Partido Socialista e de aliados, como o Partido Comunista do Chile, conservaram as medidas antinacionais e antipopulares do período de 1973 a 1990. O afastamento do fascista se deu por meio de um acordo dos socialdemocratas com os pinochetistas, sob a benção dos Estados Unidos. O que resultou em um acordo de conservação da obra da ditadura militar. Mesmo o restabelecimento da democracia formal ocorreu de maneira a não provocar rupturas profundas com as instituições erguidas pelos generais. A Constituição que substituiu à da ditadura manteve aspectos fundamentais do regime ditatorial. O Chile se tornou o exemplo mais genuíno de como a burguesia necessita de um regime e governo altamente centralizadores e fascistizantes, que destroem as organizações dos explorados. A profunda derrota da classe operária e dos camponeses, que se iludiram com o governo de Unidade Popular, de Allende, os impediu de trilhar o caminho da revolução social, possibilitou o golpe e aplainou o caminho para a volta da democracia mais desfigurada que a do passado, anterior ao golpe de 1973. O método de guerra civil, aplicado por Piñera, corresponde não só à necessidade presente do poder da burguesia, como a uma regressão às conquistas democráticas, que permitiram a constituição de um governo frentepopulista, de aliança do Partido Socialista com o Partido Comunista. A revolta, nesse momento, expõe as raízes históricas que antecedem o golpe fascista, e as que dele germinaram. É sobre a base dessa experiência que a revolta popular ganhou enorme dimensão, depois das manifestações da juventude estudantil, em 2006, 2011 e 2012. A diferença, agora, é que o movimento se ampliou, refletindo o descontentamento da classe média empobrecida, e assinalando a necessidade do proletariado tomar a iniciativa da luta de classes. Ressalta, dramaticamente, a necessidade de construir o partido marxista-leninista-trotskista, que erradique no seio das massas a influência nefasta da socialdemocracia e do estalinismo putrefato.

Nota-se que vem ocorrendo uma conjugação de respostas dos explorados e da juventude às consequências da crise econômica, do avanço da barbárie e das contrarreformas. Trata-se da manifestação das tendências de luta, que se potenciam em cada país, e se generalizam na América Latina, devido à situação insuportável de sobrevivência da maioria oprimida. É certo que não é um acontecimento novo. Constantemente, as massas enfrentam medidas governamentais que agravam a concentração de riqueza, sob a posse de uma minoria, e a expansão da pobreza e miséria, sobre a maioria.

O capitalismo, há muito, que não tem como desenvolver mundialmente as forças produtivas. As crises constantes se convertem em destruição de parte delas. O desemprego e subemprego crescem, em vez de diminuírem. A burguesia, sob a condução do capital financeiro, não encontra outro caminho, a não ser o das contrarreformas.

Os choques frontais dos explorados no Equador, Chile e Haiti, em particular, dão a dimensão do desenvolvimento da luta na Bolívia, Argentina, Colômbia, Peru e Brasil. Apesar das especificidades, a crise na Venezuela é parte do mesmo processo de desintegração do capitalismo e decomposição dos regimes políticos. As greves, protestos e revoltas têm ocorrido, tanto sob os governos nacional-reformistas incapazes de enfrentar o imperialismo, quanto os governos francamente pró-imperialistas. É nessas condições que, na Argentina, o peronismo volta ao poder. No Chile, os socialdemocratas vão aproveitar a desmoralização do governo pinochetista para, mais uma vez, se apresentarem como solução política. No Brasil, cresce a esperança do PT, com a possibilidade de Lula ser libertado, nas condições em que as massas já abriram, com a greve geral e manifestações, uma rota de colisão com o governo Bolsonaro.

É preciso, ainda, considerar as tendências de luta de fora da América Latina. É sintomática a união das massas no Líbano, um país fragmentado por etnias e sectarismo religioso, contra as medidas pró-imperialistas. O governo iraquiano não tem conseguido conter a revolta das massas, apesar das forças de repressão terem matado 157 manifestantes. A unidade anti-imperialista do povo iraquiano se choca com o intervencionismo norte-americano. Na França, embora Macron tenha controlado o impulso do movimento dos “Coletes Amarelos”, nada foi resolvido.  O retorno às ruas do movimento separatista da Catalunha expõe a ferida aberta em uma Espanha estagnada e em retrocesso. O impasse do Brexit, na Inglaterra, não deixa dúvida sobre a decomposição da União Europeia, que não teve como servir de meio para desbloquear suas forças produtivas. A greve na General Motors, nos Estados Unidos, chamou a atenção pelo fato da maior potência vir passando pelo processo de desindustrialização. Indicou que a política protecionista, e o objetivo de repatriar parte das indústrias, não têm conseguido aplacar as contradições internas.

Esse quadro geral testemunha que as forças produtivas, altamente desenvolvidas, tendem a se desintegrar, sob a forma da propriedade capitalista dos meios de produção e as fronteiras nacionais que as encarceram. A revolta das massas expressa tais contradições, em outras palavras, o esgotamento histórico do capitalismo. Expressa o amadurecimento das premissas materiais da revolução proletária, mesmo nos países em que a presença do pré-capitalismo seja marcante, como na Bolívia, Equador, Haiti, etc. A economia combinada desses países, em que se preservam modos de produção distintos, pré-capitalista e capitalista, sob a dominação imperialista, faz parte da economia mundial. Está aí por que esses países semicoloniais somente se libertarão com a revolução proletária. A sua composição camponesa, presa às relações pré-capitalistas de produção, coloca a necessidade da revolução agrária, que se acha vinculada à luta pela ruptura com o imperialismo e em defesa da independência nacional. É do interesse dos explorados do campo se unir ao proletariado, em uma aliança operária e camponesa, que tem por finalidade derrotar a burguesia e implantar o governo operário-camponês, expressão governamental da ditadura do proletariado. A vanguarda que desperta nas revoltas poderá impulsionar a construção do partido revolucionário, como parte da reconstrução da Partido Mundial da Revolução Socialista, em defesa da estratégia dos Estados Unidos Socialistas da América Latina. Para isso, está obrigada a organizar a luta  dos explorados, sob a bandeira do governo operário e camponês.