• 27 mar 2020

    Não se deixar confundir pela divisão interburguesa

26 de março de 2020

A divergência de Bolsonaro com os governadores, em particular com João Doria, de São Paulo, diante das medidas de quarentena e isolamento social, requentou o conflito originado no início da pandemia. A primeira declaração do presidente foi de que a imprensa estava provocando “histeria”. Em resposta, as vozes opositoras exigiram de Bolsonaro que assumisse a condução da campanha contra o covid-19. Em meio às vozes desses setores da burguesia, compareceu a voz das centrais sindicais.

Na base da divergência em torno à avaliação da gravidade da pandemia, levantou-se a ideia de que era preciso a “união nacional”. As centrais, sindicatos e movimentos ecoaram a diretriz da “união nacional”, sustentada por uma poderosa fração da burguesia, e apoiada pelos meios de comunicação. O alinhamento político em volta do amplo confinamento da população se traduziu em isolamento da posição de Bolsonaro.  A rigor, antes da eclosão da pandemia, agravava-se a crise política, impulsionada pelo baixo crescimento da economia. Crescia o desentendimento entre o governo e o Congresso Nacional, embora Bolsonaro estivesse rodeado de militares.

A impossibilidade de alterar, sensivelmente, as tendências da crise econômica, que tem como marco a recessão de 2015-2016, o fortalecimento do Congresso Nacional obtido com o impeachment de Dilma Rousseff e, sobretudo, a disposição de resistência das massas às contrarreformas, inviabilizaram a implantação de um governo bonapartista, portanto, capaz de dirigir o país por cima das forças políticas da burguesia e da luta de classes. Se dependesse da orientação política do presidente e de seus ministros militares, hoje, o país estaria sob o “estado de sítio”. Há indícios de que, no caso do agravamento das divisões interburguesas e da luta de classes, Bolsonaro recorrerá à via golpista.

O movimento direitista de ataque ao Congresso Nacional, que culminaria com a manifestação de 15 de março, daria sinal de que o governo militarista estava disposto a mobilizar a classe média, e criar as condições para a via bonapartista. A pandemia modificou esse curso. Setores da burguesia, que influenciam os meios de comunicação, exigiram a suspensão do ato bolsonarista, contando, para isso, com a disposição das centrais sindicais de desmontar o “Dia Nacional de Luta”, de 18 de março. Os grupos mais resistentes da ultradireita não aceitaram o cancelamento. Embora raquítico, Bolsonaro prestigiou o movimento do dia 15, comparecendo no ato de Brasília. A gritaria burguesa repetiu a exigência de que cabia ao presidente da República dirigir a campanha de confinamento, e dar o exemplo de “união nacional”. As centrais sindicais seguiram essa toada. Na condenação à atitude de Bolsonaro, se destacou o governador Doria (SP). O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tomou a frente da campanha, que logo foi apoiada por partidários e opositores do presidente. Naturalmente, o governador de São Paulo deu impulso às medidas de confinamento, e ocupou o espaço de Bolsonaro.

Quando a confluência das forças burguesas opositoras começava a se soldar com as orientações do Ministério da Saúde, Bolsonaro interrompeu a lua de mel da “união nacional”. Acusou Doria de utilizar a pandemia como “palanque eleitoral”. Criticou o isolamento total e, em particular, o fechamento do comércio e a interrupção dos setores de serviço. O que pareceu ser mais um de seus desvairos, na realidade, era reflexo político das pressões de uma fração do empresariado. A base econômica do bolsonarismo reagiu às perdas. Além disso, a previsão de que o Brasil pode mergulhar numa recessão, e abrir um novo capítulo dos desequilíbrios fiscais, assustou a maioria do núcleo governamental.

A queda de popularidade e os “panelaços” de uma parcela da pequena burguesia têm em contrapartida a potenciação da oposição burguesa. Doria procurou tomar a frente, no momento em que o PT e seu braço sindical comparecem como auxiliares da política dos governadores e da fração partidária que controla o Congresso Nacional. É sintomático que Lula esteja, por enquanto, silencioso.  Provavelmente, o caudilho petista espera tirar proveito da rachadura, que vem se ampliando na aliança que possibilitou a vitória da ultradireita. Não está descartada a possibilidade de um aprofundamento da crise econômica e política, que torne inviável a continuidade do governo. Os estrategistas do Palácio do Planalto estão pressentindo que o governo caminha para a borda do precipício. Passada a pandemia, com maior ou menor número de mortos, imediatamente, virão à tona, as contradições econômicas e sociais.

Bolsonaro não ficou paralisado diante dos abruptos acontecimentos. O ministro da Economia apresentou um pacote econômico, cujo maior montante é dirigido a apoiar grupos econômicos. Acompanham essa orientação, medidas de ataque direto aos assalariados.  Uma delas, talvez a mais dura, é a de permitir ao patronato reduzir a jornada de trabalho e salário, que pode chegar a 50%. Em seguida a esse pacote, Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional uma Medida Provisória que dava poderes aos empregadores de suspender os trabalhadores por quatro meses, sem salário. A dose do veneno era maior do que o organismo podia aguentar. Diante da resistência do Congresso Nacional em abraçar essa causa, o governo teve de recuar e prometer uma nova versão.

A demagogia burguesa, que inclui o humanitarismo pequeno-burguês, precisa de alguma contrapartida, que dê a impressão de que o Estado se preocupa com a vida dos pobres e miseráveis, denominados capciosamente de “vulneráveis”. As negociatas entre o governo e o Congresso Nacional em torno ao valor a ser concedido aos trabalhadores informais – passando de R$ 200 a R$ 600 – deram a dimensão precisa da mesquinhez do capital. Os parlamentares humanitaristas precisaram mostrar a boa intensão de aumentar o valor, passando para R$ 500. Bolsonaro para não deixar a “bondade” nas mãos do Congresso Nacional, aumentou para R$ 600. Esse tipo de jogatina é próprio da política burguesa, voltada a enganar os explorados. Doria acabou ridicularizado com o anúncio dos R$ 55 para as crianças que perderam a merenda escolar.  É nesse quadro de apoio aos capitalistas e de hipocrisia humanitária que se desenvolvem os atritos interburgueses, preparando o caminho para as futuras disputas eleitorais. O vendaval da pandemia perderá toda sua importância, assim que dê lugar ao terremoto econômico e social.

O capitalismo no Brasil está estruturalmente conformado por uma minoria bilionária, uma pequena camada de classe média milionária, de uma ampla classe média arruinada e de uma vasta massa de proletários que mal sobrevivem com os salários, que suportam o desemprego e subemprego em grande escala, bem como uma massa de camponeses sem-terra, e de pequenos proprietários que os mantêm na miséria.  Eis por que sua história social está marcada pela miséria e a fome. Até onde as massas aguentarão, no caso do aumento do desemprego e subemprego, e do rebaixamento do salário? Até onde a burguesia e seus governos podem continuar descarregando a crise capitalista sobre a maioria oprimida? Até quando a burocracia sindical e os reformistas conseguirão conter a explosão instintiva de milhões que passam fome? Essas são as perguntas colocadas no momento da pandemia. Sem poder ter uma resposta de conjunto, as forças burguesas se dividem e alimentam a crise política. Bolsonaro e seu núcleo militar estão cientes da maior probabilidade de o governo fracassar.

O recrudescimento do conflito de Bolsonaro com o Congresso Nacional e com parte dos governadores é um indicador de que a burguesia terá de recorrer a formas ditatoriais e fascistizantes, que se manifestaram embrionariamente na constituição do governo ultradireitista. A democracia oligárquica, reconstituída após 21 anos de ditadura militar, evidencia suas limitações diante da crise econômica prolongada, que é um reflexo das contradições mundiais do capitalismo em decomposição. A pandemia, portanto, surge como uma pedra no meio do caminho da política democrático-burguesa, que mostrou seu apodrecimento no processo de derrubada do governo do PT, em 2016, e instalação da uma ditadura civil.

O fracasso da almejada “união nacional” é a prova de que as cisões no interior da política burguesa têm tudo para avançar. É necessário que a vanguarda com consciência de classe não se deixe confundir pelas diferenças entre Bolsonaro e os governadores; e entre o Congresso Nacional e Bolsonaro. A confusão instalada, no momento, está em considerar como essencialmente distintas, a posição que considera o isolamento um exagero, e a que diz ser a única via para conter a pandemia. Bolsonaro e Doria são duas variantes da política burguesa, que tem por essência descarregar a crise sobre os explorados. Estão unidos quanto à diretriz de utilizar o poder do Estado para proteger a classe capitalista e enganar com esmolas os pobres e miseráveis. Estão de acordo em manter as massas imobilizadas, e incapacitadas de se levantarem em defesa de um programa de emergência, que de fato as proteja contra a barbárie capitalista.

A confusão política foi instalada, desde o momento em que o governo e demais instituições do Estado impuseram o curso do confinamento, sem garantir as condições mínimas de existência de todos os trabalhadores, sem exceção. Desde quando se ocultaram as contradições entre duas crises interligadas, a econômica e a sanitária. Desde quando a burguesia e suas forças políticas impuseram a diretriz de que, para vencer a pandemia, era preciso o sacrifício dos assalariados e demais explorados. A confusão toma formas agora que a experiência do isolamento se mostra insustentável, econômica e socialmente, no caso de se prolongar.

As centrais sindicais tomaram parte e incentivaram as confusões ao responderem à crise com a política de conciliação de classes e de “união nacional”. Cometeram uma traição à imperiosa necessidade dos explorados de lutarem com seu programa de emergência. Ao desmontarem o “Dia Nacional de Luta”, a pedido de setores da burguesia, quebraram a possibilidade de armar uma resistência proletária com seus métodos próprios de luta. Um pouco mais adiante, ficará ainda mais claro que a única via das massas se defenderem diante da pandemia e da derrocada econômica era e é ganhar as ruas. A desorganização e o imobilismo puseram a maioria oprimida à mercê das variantes da política burguesa, agora visivelmente encarnadas por Bolsonaro e Doria. Todos aqueles que acreditaram, de boa-fé ou por cegueira política, que a única solução era seguir a experiência do isolamento, independente das condições sociais impostas pelos governos, se acham mergulhados na hipocrisia. Não se pode defender um programa de emergência, sem que as massas se levantem para se impor diante da burguesia e seu governo.

Nunca é tarde para lutar pela defesa da vida dos explorados e por sua independência diante das forças burguesas. Que as centrais, sindicatos, movimentos e correntes de esquerda rompam com a política de conciliação de classes, que levou ao desmonte do dia 18 de março. Que denunciem, tanto a política de Bolsonaro, como a de Doria e consortes. Que convoquem assembleias para constituir comitês de luta, em defesa do programa de emergência. É claro que, depois desse profundo refluxo do movimento, é preciso reconstituir as condições políticas e organizativas para retomar o movimento grevista.