• 18 abr 2020

    Mandetta, ministro defenestrado – O que muda?

17 de abril de 2020

Os pobres e miseráveis continuarão arcando com as consequências da pandemia. Os ricos, protegidos. As demissões e redução dos salários serão mantidas. Os desempregados e subempregados não têm outra saída, a não ser correr atrás do auxílio emergencial, uma esmola de R$600,00. A burocracia sindical e o patronato não deixarão de negociar a aplicação da MP 936. As mortes provocadas pelo coronavírus seguirão em escala ascendente, até que esgote seu ciclo. Sai um ministro do governo burguês e entra outro, atendendo aos objetivos políticos e econômicos do presidente da República e de setores do poder econômico.

Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich são políticos vinculados ao sistema privado de saúde. Ambos pertencem ao partido DEM, uma das variantes partidárias da oligarquia. Nada muda, quanto à orientação burguesa diante da pandemia. Mandetta não levantou um fio de cabelo contra as medidas emergenciais de Bolsonaro/Guedes e Congresso Nacional, que favorecem os capitalistas e sacrificam a maioria da população. Deixa o governo com ares de cientista humanitário. O que mal esconde seu carreirismo na política burguesa, que lhe valeu a nomeação como ministro da Saúde pelo governo ultradireitista e obscurantista de Bolsonaro. Seu substituto, Teich, é da mesma laia, mas é um economista de saúde, faltando-lhe o traquejo de parlamentar, que Mandetta tem em excesso. Bolsonaro, não temos dúvida, fez um mal negócio, em se desfazer de um ministro da saúde que se popularizou e que dava cobertura às medidas antinacionais e antipopulares.

Mandetta assumiu a orientação da OMS, como fez a maioria das autoridades sanitárias em todo o mundo. Bolsonaro, seguindo a linha de Trump, não teve como compatibilizar o isolamento social com a crise econômica, que persistia, desde a recessão de 2015-2016. O governo bolsonarista deu continuidade à crise política, que não foi estancada com a derrubada do governo do PT e a instalação da ditadura civil de Temer. O programa de ajuste fiscal do ministro da Economia, Paulo Guedes, condicionado pela gigantesca dívida pública, comprimiu o crescimento econômico, depois de uma queda média de 7%, na recessão. A promessa de Guedes, de que o País retomaria o crescimento acima de 2%, assim que as reformas dessem frutos fiscais, foi golpeada pela pandemia, nas condições de retomada da crise econômica mundial. A paralisia do comércio, serviço e indústria abriu uma grande fenda, sob os pés do governo. A resistência de Bolsonaro em ampliar e manter o isolamento social se deveu, sobretudo, à necessidade imperiosa de evitar o colapso de seu governo. Aturdido e desorganizado inicialmente, não teve como disciplinar o ministério da Saúde, que ganhou vida própria. Os governadores e prefeitos, responsáveis pelas respostas imediatas à pandemia, se ergueram como pilares de sustentação de Mandetta.

A fratura na centralização do governo Bolsonaro favoreceu a projeção de governadores oposicionistas, tendo à frente João Doria, de São Paulo. O combate à proliferação do coronavírus – nas condições adversas da saúde pública, e com a previsão de que poderia provocar a mortandade entre os pobres e miseráveis – implicava altos gastos. Ocorre que a maioria dos estados se encontra endividada, parte deles falidos. Somente o Tesouro Nacional poderia e pode assumir vultosos gastos. No final das contas, a dívida pública seria elevada às alturas. Bolsonaro, em seu discurso de posse do novo ministro, referiu-se a um gasto de R$ 600 bilhões, que poderia chegar a R$ 1 trilhão.

O capital financeiro é uma cidadela do capitalismo, que tem de ser blindada a qualquer custo. O governo de Bolsonaro não cometeria nenhuma violação à orientação do imperialismo, uma vez que todos os Bancos Centrais e Tesouros Nacionais vêm assumindo gigantescos gastos. Mesmo os mais ortodoxos liberais admitiram que, como emergência, a elevação das dívidas externa e pública era inevitável. O problema é que o Brasil tem uma das cargas mais pesadas entre os países semicoloniais, que poderá chegar rapidamente a 90% do Produto Interno Bruto (PIB).  Os estados e municípios, envolvidos diretamente com a pandemia, perderão receitas, com o baixo recolhimento do ICMS e ISS, perdas estimadas em mais de 20%. Esse motivo é o suficiente para o governo federal temer o seu futuro e, assim, condicionar a ação sanitária ao desempenho econômico. Mandetta se tornou um empecilho ao objetivo de Bolsonaro, de se impor diante dessa equação.

O agravamento da crise federativa alarmou o núcleo militar do governo, que vinha tomando as rédeas da governabilidade. O afrouxamento da centralização autoritária, própria do Estado oligárquico brasileiro, chegou ao ponto de provocar enfrentamentos públicos entre a linha pretendida pelo governo federal e a desenvolvida pelo governo de São Paulo.  A oposição burguesa, apoiada na OMS e no ministro Mandetta, se uniu em torno ao isolamento social e passou a pressionar Bolsonaro a encarnar essa via, que, sabidamente, foi rejeitada, desde o início, pelo presidente da República. A defenestração de Mandetta acabou sendo a condição para o núcleo militar do governo retomar a centralização. É sintomático que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha decidido a favor da autonomia dos estados e municípios, quanto à aplicação do isolamento social. Os atritos diários com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, são parte do problema federativo. O embate entre governo e Câmara dos Deputados, ao redor da concessão das verbas compensatórias à perda de arrecadação de estados e municípios, é parte dessa contradição entre a base oligárquica e o poder centralizado e subordinado ao imperialismo.

Bolsonaro espera que, com o novo ministro da Saúde, possa impor uma só voz desde o Planalto. Nelson Teich é um bolsonarista de primeira hora, conhecido empresário da saúde pelo setor médico-hospitalar, que vinha apoiando a posição do presidente contra o ministro Mandetta. Esse desfecho esperado contou com a pressão de uma fração do empresariado, vinculada ao comércio e serviços. Foi importante, também, o apoio do presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), Paulo Skaf, político que concorre com o governador Doria, mostrando sua concordância com a quebra do isolamento social. O efeito desse embate se observa na retomada do comércio, serviço e parte da indústria. Doria já não consegue manter o índice de isolamento alcançado, justamente no momento em que aumenta o número de infectados e mortos. A estrutura pública montada emergencialmente para socorrer um certo número de doentes já se mostra insuficiente. A rede privada está reservada aos ricos. Esse aparato concentra o que há de mais avançado na medicina. Eis por que é pequeno o número de mortos entre os afortunados, quando se expande entre os pobres e miseráveis.

As disputas interburguesas, que culminaram com a queda do ministro da Saúde, ocorrem no aparato do Estado e por cima das massas, aterrorizadas pela pandemia, pela redução dos salários, pelas demissões e pelo precipício da fome.  A fração burguesa, da qual faz parte a imprensa monopolista, alinhada à OMS e ao governo de São Paulo, se esmerou em apresentar Mandetta como aquele benfeitor que, em primeiro lugar, defende a vida. Sua demissão, nas condições de agravamento da pandemia, é um trunfo para a oposição, que será usado nas futuras disputas eleitorais. Nesse sentido, Mandetta contou com o apoio de uma frente ampla, que vai do PSDB ao PT. Mesmo algumas correntes de esquerda condenaram a demissão, sob a justificativa de que se tratava de uma ação do governo “genocida” de Bolsonaro. Deixaram, porém, um flanco aberto aos impostores que vestiram a máscara de humanitários, a exemplo de Doria.

Os reformistas e centristas de esquerda não têm como explicar as disputas interburguesas, e demonstrar que o afrouxamento do isolamento social se deve não apenas à vontade de Bolsonaro, mas também à pressão do poder econômico, ou seja, da burguesia. Não se pode, no mesmo sentido, ignorar que uma parte dos trabalhadores informais teve de voltar à labuta do dia-a-dia. Prenderam-se na armadilha da divergência burguesa em torno ao isolamento social, à falsa dicotomia entre crise sanitária e crise econômica e à absurda defesa da vida como pressuposto anterior à defesa da economia, empregos e salários.  É como se tudo isso se passasse em um sistema social abstrato, etéreo. Como se não existissem classes sociais antagônicas. Como se os explorados devessem se abrigar sob a guarda de uma fração burguesa humanitária que, supostamente, se contrapõe a uma fração genocida. Como se fosse possível transformar a água em vinho, o governo burguês direitista em governo progressista, a exemplo de Doria. Esse alinhamento contra o governo de Bolsonaro implicou um alinhamento com a frente burguesa, liderada pelos governadores. De repente, a esquerda opositora ao ultradireitista Bolsonaro se tornou aliada do direitista Doria, cujo objetivo de tal alinhamento é o da suposta defesa da vida contra a morte.

Essa máscara ideológica oculta o fato de que o isolamento social dissolveu a classe operária, que ficou à mercê da disputa interburguesa entre Bolsonaro e governadores. Mandetta e, agora, Teich não passam de peças da mesma engrenagem capitalista, que reproduz e amplia o desemprego, subemprego, fome e miséria. Bolsonaro e Doria também funcionam como peças, que amanhã serão substituídas por outras, para manter os explorados sob o regime da escravidão assalariada. Não se deve destacar apenas as distinções circunstanciais dos governantes. É obrigatório demonstrar o fundamento de classe. Os governos burgueses estão obrigados a se adaptar às condições concretas da crise econômica e da luta de classes. A pandemia atingiu o Brasil depois de um golpe de Estado, constituição de um governo de ditadura civil transitório, eleição de um governo ultradireitista, aprovação de contrarreformas (trabalhista, previdenciária, terceirização, etc.), e traição pela burocracia sindical da greve geral de abril de 2017 e junho de 2019 e, mais recentemente, da greve dos petroleiros, fevereiro de 2020.

A classe operária e demais explorados foram atingidos inesperadamente. As direções burocráticas, reformistas e centristas, desmontaram o “Dia Nacional de Luta”, 18 de março, que poderia aprovar um plano de emergência próprio e oposto ao plano da burguesia e seus governantes, que resultou na MP 936, entre outras. Desativaram a luta nacional em nome do isolamento social e da proteção de vidas. Somente a classe operária organizada, empunhando reivindicações genuínas, reagindo às demissões e cortes de salários e rechaçando acordos da burocracia sindical com o patronato, poderia e pode defender a maioria nacional oprimida contra a crise sanitária e econômica. A crise de direção revolucionária, enquanto não for resolvida, não permitirá ao proletariado encarnar seu programa histórico de expropriação da burguesia e transformação da propriedade privada dos meios de produção em propriedade social. No entanto, instintivamente, se choca com a dominação burguesa e seu Estado. Trata-se da vanguarda com consciência de classe lutar nas condições mais difíceis com a estratégia e os métodos revolucionários da classe operária. Somente assim é possível se contrapor às diretrizes do imperialismo e dos governos serviçais, que, antes de tudo, preservam os interesses do capital financeiro e dos monopólios.

As precárias condições da saúde pública, e as saudáveis condições do sistema privado, são os primeiros fatores que emergem contra a vida das massas empobrecidas, e a favor da vida da minoria enriquecida.  Objetivamente, coloca-se a estatização, sem indenização, da rede privada de saúde, e seu controle operário. Esse é um importante passo de defesa real da população diante da pandemia. A dívida pública deixa de ser um obstáculo à defesa da vida se for cancelada. Os bancos que especulam com a situação devem ser nacionalizados. As reservas cambiais que alimentam a dívida pública norte-americana, e garantem os interesses dos agiotas, podem ser aplicadas na conversão industrial, voltada a abastecer os hospitais com as aparelhagens e materiais necessários ao atendimento de todos os infectados. As multinacionais que usam e abusam da pandemia para impor maior flexibilização capitalista do trabalho, se expropriadas, sem indenização, e nacionalizadas, possibilitam sustentar as forças produtivas internas, golpeadas pela crise mundial. A constituição de uma frente única anti-imperialista garantirá a unidade da maioria oprimida contra a prepotência dos Estados Unidos e demais potências. As fábricas que demitem devem ser colocadas, imediatamente, sob o controle operário da produção. Esse é o programa do proletariado que responde, não apenas à pandemia, mas à pobreza, miséria e fome de milhões de brasileiros.

A classe operária, certamente, terá de passar por cima da burocracia sindical conciliadora, corrupta e traidora. A estratégia que serve à luta pela independência organizativa e política dos explorados é a da ditadura de classe do proletariado, que se materializará na forma de um governo operário e camponês. É nas condições objetivas mais duras de desintegração do capitalismo que emerge o programa histórico da revolução proletária.