• 29 abr 2020

    Queda de Moro amplia a crise política

Queda de Moro amplia a crise política

Combater no terreno da independência de classe, com as reivindicações e a estratégia própria do proletariado

29 de abril de 2020

A queda de Sérgio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública, provocou um abalo na política burguesa. Poucos dias antes, Bolsonaro havia despachado o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Não provocou tantos tremores, como agora, com a renúncia de Moro. Sabia-se do descontentamento de Bolsonaro com seu ministro da Justiça.  Mas não se esperava um desfecho típico de ruptura política, que comprometesse a governabilidade. Está aí por que é inevitável a comparação entre Mandetta e Moro.

No primeiro caso, o ministro da Saúde destoou da posição do núcleo do governo sobre a utilização do isolamento social, recomendado pela OMS, para enfrentar o coronavírus. A sua saída ocorreu no momento em que setores do poder econômico rompiam o isolamento e, assim, expressavam apoio material à posição política de Bolsonaro. Embora a oposição da maioria dos governadores continuasse recalcitrante, já não havia como assegurar o confinamento das massas. Não bastava a demonstração de que a pandemia se alastrava por todo o País, o contágio atingia os mais pobres, a saúde pública já não suportava o volume de infectados, e as mortes cresciam assustadoramente. E não bastavam os argumentos científicos diante do desabamento da economia. Eis por que a queda de Mandetta se justificava. Assinalou, portanto, o esgotamento da política burguesa de isolamento social.

No segundo caso, a queda de Moro não se deu nos marcos de um conflito interburguês claro e compreensível. Tudo se passou às ocultas, nos bastidores do governo. Repentinamente, o conflito potencial se transformou em ruptura, revelando a enorme inconsistência de um governo montado a dedo pelos militares, que rodearam a candidatura de Bolsonaro, desde o início. Ainda seguindo a comparação, Mandetta somente deixou de ser um ministro obscuro, quando assumiu a condução do enfrentamento à pandemia. Sua figura cresceu politicamente apoiada nos governadores, que contrariavam o esforço de Bolsonaro de subordinar a orientação da OMS ao curso da economia nacional. Sua exoneração foi pacata e cordial. Não tinha, de fato, nada a defender e a preservar.

Moro, ao contrário, entrou no governo para servir de um de seus pilares. O Ministério da Justiça foi ampliado com a incorporação do Ministério da Segurança Pública. No momento, foi dada a dimensão de um Superministério, comandado por um superministro. O pilar central dessa estrutura foi erguido com a fusão dos Ministérios da Economia, Fazenda e Planejamento, ocupado pelo ultraliberal, Paulo Guedes. E, um terceiro pilar, constituído pela reorganização do aparato de informação e polícia política, Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que ficou a cargo do general Augusto Heleno.  Esses três pilares se soldaram por meio do núcleo militar. A presença do ex-juiz federal, Sérgio Moro, refletiu o amplo apoio da classe média à operação Lava Jato e à prisão de Lula. A ofensiva do aparato judicial e policial sobre o PT, principalmente, foi utilizada para desentranhar o reformismo dos comandos do Estado. A operação Lava Jato se escorou no movimento da oposição direitista pela destituição do governo do PT, por meio do impeachment. A frente burguesa que organizou o golpe de Estado de 2016 vestiu a máscara da anticorrupção, confeccionada com primor pelo Judiciário e Ministério Público. Sérgio Moro se ergueu como estrela fulgurante, por montar um processo que levou à condenação do caudilho Lula, sem que tivesse provas materiais. A arquitetura das delações premiadas foi concebida de tal maneira que políticos e empresários fossem levados à prisão, como se a operação Lava Jato não tivesse o PT e Lula como objetivo determinado. A operação Lava Jato se desenvolveu nas entranhas da crise política, impulsionada pela crise econômica.

Moro não passaria de um desconhecido juiz de Curitiba se não fosse a conjunção da quebra econômica, que levou o País à recessão de 2015-2016, com o desabamento do governo de Dilma Rousseff. A classe média, puxada por sua camada alta, caminhou no sentido da direitização. O governo Temer não correspondia à bandeira burguesa hipócrita de fim da corrupção. A queda de Dilma não teve como servir para se colocar um ponto final na operação Lava Jato. As denúncias do Ministério Público, com a delação da JBS e as revelações das falcatruas de Temer, continuaram a fortalecer os setores sociais que levantavam as bandeiras reacionárias. Temer governou dependurado tão somente nas frações burguesas oligárquicas, que controlavam e controlam o Congresso Nacional. A cabeça do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, foi entregue como troféu, para contentar a classe média, e dar a entender que se tratava de uma vasta operação, que não poupava político de nenhum partido, e empresários poderosos. Moro, rodeado de procuradores do calibre do Sr. Deltan Dallagnol, que mais tarde teve suas ações conspiratórias contra o PT reveladas pelo Intercept, não mostrou nenhum empenho em criminalizar Temer. Ocorre que a burguesia manteve, do começo ao fim, o apoio à ditadura civil transitória, que assumiu o objetivo de impor as contrarreformas. Contrarreformas que a oposição direitista ao governo do PT vinha há tempo exigindo.

Os militares apoiaram o golpe de Estado. Viram na mudança de governo a possibilidade de reconstituir o velho aparato de segurança nacional, bem como repor a sua influência sobre a governabilidade.  A ditadura civil, apesar de insistentemente ser golpeada pelas denúncias de corrupção do presidente, pôde cumprir o objetivo de aprovar a sonhada reforma trabalhista, preparar o caminho para a reforma da Previdência e dar os primeiros passos na militarização da governabilidade. Moro se consagrou como caçador de corruptos aos olhos da classe média. E foi instituído como uma herói da burguesia.

Sob o governo Temer, a economia saiu da recessão, mas permaneceu praticamente estagnada. Os explorados, não apenas não sentiram nenhuma melhora nas suas condições de existência, como tiveram de arcar com a alta taxa de desemprego, que se potenciou com a recessão. A classe média não viu na mudança de governo o retorno das vantagens do período de crescimento econômico, que abrangeu os anos de 2003 a 2008, momento seguido pela crise mundial, que se abateu sobre o Brasil. O PSDB, DEM e MDB, que dirigiram o golpe de Estado, se responsabilizaram pela sustentação de Temer, acuado pelo Ministério Público. Figuras proeminentes desses três partidos foram denunciados, em todo o transcurso da crise política, como partícipes do amplo esquema de corrupção. Esquema revelado desde o fim da ditadura militar, ampliado no governo de Fernando Henrique Cardoso, e desenvolvido sob o governo do PT. Destacou-se o caso do senador Aécio Neves, por ser presidente do PSDB e ex-candidato à presidência da República, que concorreu com Dilma Rousseff. E Renan Calheiros, MDB, por ser presidente do Senado. As três maiores figuras da República, Temer, Aécio e Calheiros, apesar de volumosas provas materiais de envolvimento na corrupção, passaram ilesos pela justiça. A operação Lava Jato não teve como alcançá-los. Bolsonaro, como parlamentar, se destacou no combate ao PT, mas se manteve sob os grandes partidos, repletos de corruptos. Colaborou pela manutenção de Temer. A Lava Jato e toda a justiça se ocultaram à sombra da decisão do Congresso Nacional, de rejeitar a denúncia do Ministério Público contra o presidente golpista. A classe média, com sua cegueira típica, seguiu à procura de uma figura que, por ventura, se distinguisse da podridão. As eleições presidenciais serviriam para a burguesia se livrar do governo rechaçado, mas conservando a sua orientação política e econômica. O PT havia caído em desgraça. Os algozes de seu governo não puderam afastar as marcas da corrupção. Compareciam, assim, misturados como farinha do mesmo saco. As esquerdas, que levantaram as bandeiras do “Fora Temer”, “Fora Todos” e “eleições já”, pereceram na vala do eleitoralismo.

Bolsonaro se ergueu eleitoralmente sobre a rejeição ao PT, a farsa da negação da “velha política” e o combate à corrupção. Identificou-se com a Lava Jato e com o golpe de Estado, de forma a não se identificar com os velhos partidos oligárquicos, desmoralizados diante da classe média. Setores do empresariado, que não tinham influência direta nos governos anteriores, viram em Bolsonaro um instrumento a ser utilizado. E os movimentos de direita (MBL, etc.), que, desde a jornada de junho de 2013, se projetaram nas redes sociais, ganharam terreno, insuflando as tendências direitistas da classe média. As igrejas evangélicas, que se fortaleceram no interior da política burguesa, após o fim da ditadura militar, inclusive se valendo do governo petista, se colocaram como esteio de um novo fenômeno ultradireitista, batizado de “bolsonarismo”. Ocupando o espaço tradicional do anticomunismo da igreja católica, os evangélicos, vinculados ao imperialismo norte-americano, moldaram a feição ideológica dessa ultradireita, que se gestou nas entranhas da democratização, potenciando-se no final do ciclo do reformismo petista. Emparelhada a esse fenômeno de classe média, as Forças Armadas voltaram ao primeiro plano da política burguesa, depois de encerrada a farsa da Comissão da Verdade, que teve por objetivo restabelecer a conciliação entre os derrotados e os vencedores do golpe de 1964.

Bolsonaro foi municiado com as armas políticas de que precisava a ultradireita. Utilizou-se do mandato parlamentar para defender a ditadura e combater as tentativas de criminalização de alguns torturadores notórios, a exemplo do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Liderou, assim, uma fração parlamentar de oposição reacionária às ilusões reformistas do PT e aliados (PCdoB, etc.), que sonharam poder realizar uma verdadeira investigação sobre a ditadura militar, que deixou centenas de mortos e desaparecidos. O governo petista, ao se limitar a obter indenizações às vítimas da tortura e assassinato, favoreceu a campanha dos detratores da Comissão Verdade. A determinação das Forças Armadas, de não permitir o livre acesso ao sigilo da ditadura e destruir a documentação comprometedora, por sua vez, evidenciou a impotência do movimento “Ditadura Nunca Mais”. Tratava-se da incapacidade do reformismo de cumprir o objetivo programático de democratização e fortalecimento da democracia burguesa, sob a premissa do “Estado de Direito”. Tudo indica que o “bolsonarismo” nasceu nesse processo. O fracasso da política de reconciliação nacional favoreceu a organização da ultradireita militarista e fascistizante. O movimento do impeachment, posteriormente, aglutinou em uma mesma frente a ultradireita, direita e mesmo uma parcela até então considerada de esquerda burguesa.

Em toda eleição, as massas sofrem e se movem sob enorme pressão da burguesia e seus partidos. A particularidade da vitória de Bolsonaro, em outubro de 2018, está em que a política de centro-direita, galvanizada pela candidatura de Alckmin, PSDB, foi rejeitada pela maioria da população. A candidatura do PT conseguiu atrair um importante contingente da classe operária e demais explorados, que rechaçou a candidatura da ultradireita. Imediatamente, o candidato do PT, Fernando Haddad, reconheceu a derrota, e felicitou Bolsonaro. O que evidenciou a falácia petista de que estava em luta contra o fascismo. A campanha eleitoral contra o fascismo, assim, não passou de palavreado. Tratava-se de encontrar um meio de tirar Lula da prisão, uma vez que já não oferecia risco político ao objetivo de restabelecer a governabilidade. O que veio a ocorrer em 8 de novembro de 2019, depois de 1 anos e 7 meses de prisão.

A vitória de Bolsonaro tornava a operação Lava Jato politicamente desnecessária. Moro perderia sua importância, se permanecesse na condição de juiz federal. As forças políticas e econômicas, que se aglutinaram por trás de Bolsonaro, reconheceram a relevância de Moro para o processo do impeachment, a transição encabeçada por Temer, e a própria eleição do candidato da ultradireita. Nessas condições, o algoz de Lula pôde exigir de Bolsonaro “carta branca” para administrar o Ministério da Justiça e Segurança Pública. A sua presença no governo representava a adesão da classe média ao bolsonarismo, que recém assumia uma feição ideológica mais definida. Dava ao governo uma hipócrita face ética e moral burguesas. Embora Moro fosse reprovado por setores oligárquicos, havia conquistado um lugar de honra no meio empresarial, ou seja, entre os capitalistas que não compareceram comprometidos com o escândalo do “petrolão”.  Há que assinalar que um contingente de politiqueiros, encastelados no Congresso Nacional e organizados na Câmara de Deputados, por meio da coligação denominada “centrão”, se sentiu incomodado com a presença do ex-juiz no governo, tendo em vista que carregava denúncias de corrupção. De fato, os bandidos do Parlamento já não tinham motivos para recear, porque a Lava Jato havia perdido função.

A “carta branca” a Moro não demorou a ser pisoteada por Bolsonaro. Inúmeros conflitos do presidente com o Ministério da Justiça e Segurança foram gestando e agravando os atritos. O primeiro sinal, mais significativo, foi emitido no momento em que Bolsonaro pôs em marcha sua promessa de campanha de liberar o armamento. Presidente e Ministro chegaram ao meio termo, restringindo a flexibilização do porte de armas, pretendida por Bolsonaro. As mudanças no Congresso Nacional limitaram ainda mais, o que foi considerado uma derrota do governo. No momento em que Moro saiu do governo, explodiu a denúncia sobre a revogação das portarias que estipulavam o controle de armas e munições importadas e fabricadas no Brasil. A renúncia do general de Brigada do Exército, Eugênio Pacelli Vieira Mota, expressou o descontentamento com a medida arbitrária de Bolsonaro. Teme-se que a revogação da portaria facilite ainda mais o tráfico de armas, e favoreça os negócios do crime organizado. Como não poderia deixar de ser, atendeu aos interesses da indústria armamentista.

O conflito inicial sobre a liberação do armamento iria se alargar no episódio em que Bolsonaro exigiu a retirada do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Justiça. Esse instrumento de controle financeiro se converteu em poderoso instrumento político. Por meio do Coaf, se investigou o esquema de corrupção na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que se denominou “rachadinha”. Um dos envolvidos era, na época, o deputado Flávio Bolsonaro. Revelou-se a existência de uma quadrilha vinculada às milícias. O assassinato de Marielle Franco, vereadora pelo PSOL, e seu motorista Anderson Gomes, provocou um escândalo político de transcendência internacional. Moro permaneceu em silêncio, como se nada tivesse a ver com a Ministério da Justiça e Segurança Pública. Há suspeita de que Flávio estivesse envolvido a uma rede maior de contravenção, por suas ligações com o ex-policial Fabrício Queiroz e o ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, que foi identificado como um dos assassinos de Marielle. Queiroz nunca foi indiciado. Nóbrega, foragido da justiça, foi morto pela polícia, na Bahia. Bolsonaro e seu filho agiram constantemente para bloquear o avanço das investigações, sob a alegação de que se tratava de perseguição política. Moro permaneceu com os olhos fechados, apesar do escândalo envolvendo Flávio, Queiroz e Nóbrega preencher por um bom tempo o noticiário nacional. O presidente exigia uma atitude ativa de proteção à sua família contra uma devassa via Coaf. Tornou-se patente que Moro, de um lado, se comprometia com a corrupção, por não agir prontamente na apuração das denúncias, e, de outro, procurava ocultar a sua conivência por meio da passividade. No episódio em que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, acatou o pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro de suspensão das investigações, o presidente Bolsonaro alargou a desavença com Moro, porque o ministro colocou um senão à decisão de Toffoli.

A biografia do ex-juiz, tido como severo com a corrupção, já não podia ser sustentada. Ou Moro permitia que sua verdadeira face fosse revelada inteiramente, ou levaria os atritos com o presidente às últimas consequências. Esse momento chegou, quando Bolsonaro lhe deu um ultimato. Moro deveria ceder não mais o anel, mas também o dedo.  Tinha de se submeter às ordens do presidente. O que começaria com a troca do delegado-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, homem de confiança de Moro, e desafeto de Bolsonaro. Caberia a Bolsonaro indicar um novo nome. Haveria uma remodelação nas superintendências estaduais da Polícia Federal. Bolsonaro, há muito, pretendia colocar um homem de sua confiança na superintendência do Rio de Janeiro, por meio do qual poderia manejar as investigações contra sua família. O controle desse importante aparato policial faz parte da necessidade do governo militarizado restabelecer a centralização ditatorial burocrática, que caracteriza o Estado oligárquico brasileiro.

No governo do PT, principalmente, a Polícia Federal ampliou seus poderes de investigação sobre a política burguesa. A autonomia relativa alcançada pela Polícia Federal já não podia ser mantida. A denúncia de Moro de que rompia com o governo em defesa da Polícia Federal, como instituição do Estado e não de governo, não passou de palavreado. O mesmo se pode dizer da falsa premissa da autonomia. O que se passou no governo do PT não se passará em nenhum outro governo burguês. A relativa autonomia conseguida nos governos de Lula e Dilma somente foi possível devido ao fato de o governo reformista perder o controle da centralização autoritária, inerente ao caráter oligárquico do Estado e à polarização histórica entre alta concentração de riqueza nas mãos da minoria capitalista e ampla miséria da maioria oprimida.  Esse tipo de governo nacional-reformista se viabilizou graças às condições econômicas favoráveis e às facilidades com que a burocracia sindical manejou a política de conciliação de classes. Está aí por que, diante do esgotamento do período de bonança, emergiram as tendências autoritárias da dominação burguesa. A autonomia e a “carta-branca” desejada por Moro expressaram os reflexos anteriores da situação, em que as instituições do Estado se projetaram em função da necessidade de pôr limites ao governo reformista. Não podia, portanto, se materializar sob um governo que nasceu vinculado ao golpe de Estado. A autoridade do ex-juiz conquistada pela operação Lava Jato, principalmente pela prisão de Lula, não foi suficiente para sustentar a “carta-branca”. Moro ingressou no governo, deixando um flanco aberto. Pediu a Bolsonaro que lhe fosse garantida uma pensão à família, em caso de necessidade; e contava com o compromisso de ser indicado a ministro do STF. Teve de revelar o pedido de pensão, em seu discurso de renúncia, para não ser denunciado pelos bolsonaristas.

O núcleo militar negociou com Bolsonaro para que se indicasse para ministro da Justiça e diretor-geral da Polícia Federal nomes palatáveis. A imprensa oposicionista denunciou os vínculos de Jorge Oliveira com a família de Bolsonaro, cuja indicação ao Ministério da Justiça havia sido anunciada pelo presidente. O ex-policial ganhou o cargo de chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, graças à indicação de um dos filhos de Bolsonaro. A denúncia do descarado vinculo familiar obrigou o núcleo militar a exigir de Bolsonaro a nomeação de André Mendonça para o cargo de ministro da Justiça. No caso de Alexandre Ramagem, diretor geral da ABIN, para substituir Valeixo na Polícia Federal, também prevaleciam os laços familiares. Subiu na carreira política, servindo de segurança na campanha eleitoral de Bolsonaro. Não houve como dissuadir Bolsonaro dessa nomeação. Há algum tempo, a oposição burguesa e a imprensa vinham, insistentemente, expondo a gravidade de se ter instalado no mais alto cargo da República um clã familiar. Não puderam, no entanto, reconhecer que esse tipo de governabilidade reflete a decomposição da burguesia, classe completamente parasitária. Bastou os ministros do STF elogiarem André Mendonça, supostamente como um “técnico”, para os politiqueiros da burguesia seguirem o andor. É como se o problema permanecesse apenas no caso de Alexandre Ramagem. A oposição se encarregou de separar as duas nomeações, carregando as tintas sobre Ramagem. O fato do ministro do STF, Alexandre Moraes, ter acatado o mandado de segurança do PDT, que pedia a suspensão da nomeação de Ramagem, expõe a enorme dificuldade de Bolsonaro em reatar suas relações com os demais poderes da República.

Uma fração da oposição burguesa, principalmente a dos reformistas, torceu para que caísse o ministro da Economia, Paulo Guedes. A discórdia do ministro ultraliberal com o anunciado “Plano Pró-Brasil”, montado nos Ministérios da Casa Civil, Desenvolvimento Regional e Infraestrutura, foi imediatamente contornada. Bolsonaro apresentou Guedes como superministro, ao qual devem estar subordinados os ministros Rogério Marinho e Tarcísio de Freitas. O general Walter Braga Netto, ministro da Casa Civil, teve de recuar. O governo procurou se mostrar unido, em torno à política econômica ultraliberal, ditada pelo capital financeiro. A sombra do estatismo militar foi, assim, afastada, condição para arrefecer a ofensiva da oposição burguesa. Bolsonaro e seu núcleo militar procuram diluir os ácidos ataques das mais variadas tendências opositoras, da direita à esquerda reformista. A permanência de Guedes é o seguro de que necessita para o governo tomar um fôlego.

O DEM, que reclamava da campanha dos bolsonaristas contra o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, tomou a dianteira para obstaculizar a ofensiva de parte da oposição, que levantou a bandeira de renúncia ou impeachment de Bolsonaro. O STF, por sua vez, terá três meses para tratar da investigação sobre as denúncias de Sérgio Moro a Bolsonaro. O Ministério Público teme que o tiro possa sair pela culatra, caso o inquérito se volte contra Moro. É sintomática a intervenção do vice-presidente, Hamilton Mourão, explicando o movimento dirigido a criar uma base parlamentar, incorporando o “centrão” ao governo. A denúncia do deputado Paulinho da Força, presidente do Solidariedade, de que não aceitou o “comando do porto de Santos”, indica que os ratos estão temerosos em comer o queijo na ratoeira dos bolsonaristas. Provavelmente, vão exigir que o queijo seja de primeira qualidade. Bolsonaro não tem como conter o desabamento de seu governo, se não erguer imediatamente um muro de arrimo no Congresso Nacional. Foi o que Temer fez para conseguir atravessar a tempestade. A propaganda burguesa de que as eleições de 2018 renovou o Congresso Nacional, trazendo ao País a esperança de dias melhores, sucumbiu juntamente com a farsa de que Bolsonaro encarnava a mais alta moralidade. A cova de ladrões continua repleta de interesseiros e larápios. E toda conversa fiada do reformismo, de democratizar o Estado oligárquico e constituir uma democracia popular, caiu no bueiro da política burguesa dominante.

A participação de Bolsonaro no ato em frente ao Quartel General do Exército, que pedia a intervenção das Forças Armadas, o fechamento do Congresso Nacional e do STF, indispôs ainda mais o governo com as instituições fundamentais à governabilidade, principalmente, nas condições da crise sanitária e econômica. Essa atitude provocou uma reação generalizada no interior da política burguesa, deu margem para ampliar a unidade de uma frente ampla da direita liberal à esquerda reformista. A aproximação de Lula e Doria foi um sinal de alerta ao governo. Nesse marco, confluíram vários acontecimentos adversos ao governo, entre eles a exoneração de Mandetta, e a renúncia de Moro. A safra de impeachment semeada neste momento poderá ser colhida mais à frente, assim que a pandemia não interferir tão profundamente na economia e na vida social. A indisposição do DEM em impulsionar o impeachment indica que o mais provável é que haverá um compasso de espera. Por mais que se procure evitar o novo trauma proveniente de um processo de impeachment, a tendência da crise econômica é de golpear ainda mais o governo.

A pandemia não fez senão potenciar a crise econômica e acelerar a crise política. A divisão interburguesa, em torno ao isolamento social, expôs as dificuldades de Bolsonaro de impor a centralização burocrática militar, afeita a um governo de caráter bonapartista. Ou seu núcleo militar recompõe a centralização e disciplina as frações opositoras da burguesia, ou a crise se tornará mais aguda, inviabilizando a governabilidade de Bolsonaro. Os setores conciliadores, que, por enquanto se expressam na política do “centrão”, veem na crise política uma oportunidade para se instalarem na máquina do Estado. A reclusão das massas e o temor com a pandemia ocultam o lugar da luta de classes no curso da decomposição da política burguesa. Os vários acontecimentos, que se aglutinaram no curto espaço e no tempo, parecem limitados aos marcos do Estado, nos choques entre os poderes da burguesia. Basta observar que, em sua base, se encontra o bloqueio das forças produtivas, que não têm como se desenvolver, e se desintegra. A destruição de milhões de postos de trabalho, aumento do desemprego, subemprego e informalidade são as consequências visíveis da contradição entre as forças produtivas e as relações de produção capitalistas. As contrarreformas – trabalhista, previdenciária, terceirização, etc. – vinham acompanhadas da promessa de retorno dos investimentos e, portanto, do crescimento econômico. A propaganda governamental depositava fé no futuro promissor. A combinação da crise sanitária com a crise econômica arrebentou as diretrizes do governo Bolsonaro.

A política de conciliação de classes da oposição reformista e de seu braço sindical burocrático auxiliou o governo e o Congresso Nacional a iludirem a classe operária e demais explorados. As traições à greve geral de junho de 2019, e à anterior, de abril de 2017, permitiram a imposição das violentas medidas antioperárias e antinacionais. Tais imposições, de acordo com a política de conciliação, resultariam do embate entre as classes, nos quadros da democracia burguesa. E que, por isso, o resultado final deveria ser acatado pelos explorados. O mesmo se passou com a importante greve nacional dos petroleiros, que antecedeu a eclosão da pandemia. A resistência dos petroleiros se chocava diretamente com o programa pró-imperialista de privatizações. Em seguida, os reformistas, as centrais sindicais e toda a esquerda se alinharam ou se adaptaram à resposta burguesa do isolamento social. Acataram o chamado dos governos e do Congresso Nacional a cancelar o “Dia Nacional de Luta”, de 18 de março. Os bolsonaristas desconheceram o apelo e mantiveram sua manifestação do dia 15. Boa parte dos assalariados foi empurrada para o confinamento, sem saber o que de fato iria acontecer. Outra parte teve de continuar indo ao trabalho, também sem saber o que iria acontecer. O desmonte do “Dia Nacional de Luta” teve uma importância decisiva para o curso dos acontecimentos. Como ocorreu logo no início da pandemia, evitou-se a intervenção das massas, que lhes dava as condições coletivas para fixar uma posição de classe dos explorados, diante das medidas que os governos tomavam e iriam tomar. Os sindicatos deveriam ter convocado assembleias, e as centrais garantirem a unidade da resposta proletária à pandemia, e suas consequências econômicas e sociais.

A classe operária desorganizada ficou à mercê da divisão interburguesa, que se cristalizou na figura de Doria, governador de São Paulo, PSDB, e de Bolsonaro. A capitulação das direções sindicais, que não salvou nem mesmo a CSP-Conlutas, dirigida pelo PSTU centrista, auxiliou a burguesia e seus governos a esconderem a impossibilidade de o capitalismo viabilizar o isolamento social. A oposição burguesa, que é multifacetária, passou a comparecer como um só bloco, uma espécie de frente ampla, sob a liderança de Doria, que se prepara para as próximas eleições. As centrais, objetivamente, se colocaram por trás do bloco oposicionista, apesar de suas diferenças burocráticas. É elementar para os marxistas a premissa de que a classe operária, fora da produção social e desorganizada, não tem como se contrapor a qualquer fenômeno capitalista que atinja as massas.

A tremenda pressão da crise sanitária provocou adaptações e vacilações das correntes, que se reivindicam do marxismo, leninismo e trotskismo. Nota-se que isso se passou e se passa em nível internacional. No Brasil, a assimilação das pressões burguesas foi e é descarada. Todas as correntes, sem exceção, se submeteram ao cancelamento burocrático, arbitrário, do “Dia Nacional de Luta”. Todas acabaram se comprometendo, direta ou indiretamente, com os acordos on-line, realizados pelos sindicatos, sob o tacão da MP 936.  E todas aderiram ao 1º de Maio virtual. O Dia Internacional dos Trabalhadores foi, simplesmente, abolido no momento em que o poder econômico já havia rompido o isolamento social, e milhões voltavam ao trabalho.

A crise do governo Bolsonaro se amplia na situação em que a classe operária não tem como se manifestar. É justamente nas condições de desintegração de um governo burguês que os explorados podem melhor aproveitar para levantar suas reivindicações, e agir com seus métodos próprios de luta. A burguesia necessita da continuidade do temor provocado pela pandemia para encontrar uma solução à estabilização do governo. Conta também com o aumento exponencial do desemprego para manter o temor dos trabalhadores. A volta desorganizada ao trabalho facilita as pressões do poder econômico e dos governos sobre os explorados. A burocracia sindical, certamente, se valerá do receio da classe operária e demais explorados para evitar a imediata contestação aos acordos de redução dos salários, desemprego e maior proliferação da miséria.  As frações burguesas, que se chocaram em torno à orientação do Estado no enfrentamento à pandemia, vão calibrar suas divergências, de acordo com as tendências de luta das massas pós pandemia.

A classe operária voltará ao leito normal da produção, sem contar com reivindicações próprias, ou seja, com um plano de emergência oposto ao do governo e do Congresso Nacional. Voltará sem que os sindicatos expliquem os motivos de seus temores, para elevar a consciência de classe sobre a tormenta vivida, e a que a espera. O desemprego e a fome potenciam a situação social explosiva, que já existia anterior à crise sanitária. Os organismos internacionais e o imperialismo orientam os governos a agirem imediatamente, com programas assistencialistas, para conter uma possível revolta popular. O Brasil é um dos países em que as condições objetivas podem dar lugar a uma situação de duros enfrentamentos entre a maioria oprimida e minoria opressora. A burguesia conta, no entanto, a seu favor com uma burocracia sindical altamente estruturada e vinculada internacionalmente à burocracia serviçal do imperialismo.

A vanguarda com consciência de classe deve trabalhar no seio do proletariado contando com os instintos de revolta, que emergirão em choque com as direções contrarrevolucionárias. A crise econômica, que se desdobrará da pandemia, será mais potente que a de 2008-2009. Economistas e especialistas preveem que, mundialmente, será mais ampla e profunda que a de 1929.  A onda pandêmica, que se generalizou, e as consequentes respostas burguesas, interrompeu, momentaneamente, a luta de classes, que se aprofundava em vários países. No Brasil, interrompeu a retomada do movimento operário e das massas, depois da paralisia provocada pelas traições e derrotas dos explorados, que tiveram de suportar as brutais contrarreformas da ditadura civil de Temer e do governo militarista de Bolsonaro. O “Dia Nacional de Luta”, que foi cancelado, indicou que a burocracia se tornava suscetível ao crescente descontentamento das massas, diante do alto desemprego e do agigantamento do subemprego. Mais dia, menos dia, a luta de classe mundial emergirá como uma força mais potente. O Brasil não ficará à margem.

O caráter mundial da crise econômica, sua extensão e profundidade, põe à luz do dia as premissas objetivas da revolução proletária. O imperialismo e suas frações burguesas semicoloniais não têm como superar a contradição entre as forças produtivas, as relações de produção e as fronteiras nacionais. Têm de manter a marcha ascendente de destruição de parte delas, processo esse que obriga a classe operária a retomar suas tradições revolucionárias. A crise de direção pode ser enfrentada pela vanguarda, apoiando-se na dura experiência vivida pelas massas com a impossibilidade do capitalismo de protegê-las, diante da pandemia. O programa de expropriação da propriedade privada dos meios de produção e transformação em propriedade social comparece como a via concreta de libertar os explorados do jugo capitalista e superar a barbárie social. A vanguarda tem de se colocar diante de cada embate com a burguesia empunhando a estratégia da revolução e ditadura proletárias.

A classe operária e demais explorados, no entanto, recomeçarão a luta, partindo de suas reivindicações elementares, de defesa dos empregos e salários. Ganhará vigência material o plano de emergência, posto nas condições da pandemia. É por essa via que a classe operária começará a entender o que se passou com a política burguesa do isolamento social, e a incapacidade dos capitalistas de aplicá-lo universalmente, garantindo a proteção sanitária e trabalhista ao conjunto da população. É preciso observar e avaliar por onde os explorados começarão a reagir contra a carga negativa descarregada pela burguesia e seu Estado sobre seus ombros. A permanência da crise política favorecerá o instinto de revolta da maioria oprimida.

A orientação do momento é a de preparar-se para a volta ao trabalho, exigindo que os sindicatos convoquem assembleias, e que as centrais rompam com a política de conciliação de classes. Não há dúvida de que as frações burguesas, que hoje se digladiam, amanhã se unirão para impor novas medidas antioperárias e antinacionais.

Estando na produção, o proletariado terá condições de ver a gravidade do plano de emergência da burguesia, negociado entre Bolsonaro e o Congresso Nacional. A burguesia e o governo voltarão à carga, com novos projetos de salvação dos interesses do grande capital, dos credores da dívida pública e do imperialismo. A classe operária e demais explorados voltarão a lutar contra o conjunto das contrarreformas, que vêm sendo implantadas desde o governo Temer. É necessário ajustar a defesa do plano de emergência próprio dos explorados com as reivindicações mais vitais e a estratégia revolucionária. As reivindicações emergenciais devem levar os explorados a defenderem o programa de reivindicações transitórias. Em oposição à solução burguesa da crise de governabilidade, o destacamento com consciência de classe tem a seu favor as condições para propagandear no seio dos explorados a bandeira do governo operário e camponês e o programa da revolução proletária.