• 27 maio 2020

    Não confundir a política da classe operária com a política da oposição burguesa

Crise política

Não confundir a política da classe operária com a política da oposição burguesa

27 de maio de 2020

A destituição do ministro da Justiça, Sérgio Moro, expôs a enorme amplitude da crise política. Trata-se do fracasso do governo ultradireitista, que aspirava colocar-se por cima das frações burguesas, parlamento e judiciário. Não por acaso, Bolsonaro, desde o início, conferiu ao seu governo uma feição militarista. A crise econômica, que não foi debelada na ditadura civil de Temer, golpeou os objetivos governamentais de Bolsonaro, já no primeiro ano de seu mandato. A queda de Moro, porém, se distingue por romper, definitivamente, a aliança de uma ala da direita com a ultradireita. É nesse marco que a oposição burguesa reformista procura se potenciar, sob a máscara da defesa da vida dos explorados e da economia do País.

O país está diante da decomposição do governo militarista e fascistizante. A direita liberal procurou utilizar a ascensão da ultradireita, encarnada por Bolsonaro, para impulsionar a diretriz das contrarreformas, antinacionais e antipopulares. O pivô da aliança foi o ministro da Economia, Paulo Guedes, um representante do capital financeiro, portanto, do ultraliberalismo.  Foi decisivo, para a vitória de Bolsonaro, o apoio da direita, encabeçada pelo governador de São Paulo, João Doria, PSDB. Nesse mesmo sentido, encaixa-se o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, embora seu partido, o PSC, não tenha relevância nacional, principalmente, se comparado com o PSDB.   Ambos se afastaram prematuramente de Bolsonaro, diante da constatação de que não teriam um lugar de destaque junto ao governo federal. Tanto um quanto o outro aspira à presidência da República. O que os rivalizam eleitoralmente. O afastamento dos governadores de São Paulo e Rio de Janeiro se concluiu com a ruptura no quadro da crise pandêmica. A queda de Moro, distintamente da dos demais ministros, entre eles Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, desequilibrou as relações entre a ultradireita, direita e centro-direita. Os atuais embates evidenciam a heterogeneidade do campo da direita burguesa.

O governo de Bolsonaro só foi possível devido à derrubada do governo do PT, que ocupa o lugar da esquerda burguesa.  O movimento do impeachment contra Dilma Rousseff uniu todas as tendências do centro, direita e ultradireita. Apoiando-se na classe média, a frente burguesa golpista esperava cumprir as orientações do capital financeiro, e estabilizar a situação econômica, que se decompôs, desde a crise mundial de 2008, cujos reflexos mais violentos se manifestaram na recessão de 2015-2016. O impeachment se confirmou como um instrumento de troca de governo burguês pela via de um golpe institucional, que não necessita da intervenção direta das Forças Armadas, como a que ocorreu com o golpe militar de 1964, embora estas o tenham referendado. A justificativa de se recorrer a tal medida traumática foi a de restabelecer a ordem econômica, política e moral. Os fatos posteriores puseram à luz do dia essa impostura burguesa. A ditadura civil de Temer não deu um só passo nesse enunciado. Ao contrário, cumpriu a função de um governo de transição, mergulhado na fossa da corrupção, incapaz de retomar o crescimento econômico e de melhorar um centímetro que fosse as condições de miserabilidade da maioria oprimida. A frente burguesa de centro, direita e ultradireita garantiu a existência de Temer, para, finalmente, ser substituído por um governo legitimado pela formalidade do voto popular. A justificativa de sua existência se concentrou na reforma trabalhista. Essa foi a grande contribuição do golpe de Estado e do governo Temer aos interesses da burguesia.  Há, no entanto, uma outra face desse processo. Temer reconstituiu o aparato militar e de segurança policial, que havia sido desestruturado, mas não banido, com o fim da ditadura militar. É bom recordar a intervenção federal no Rio de Janeiro, que colocou o governo do estado nas mãos do general Walter Souza Braga Netto. Hoje, ministro da Casa Civil de Bolsonaro.

As frações burguesas e suas variadas expressões políticas se frustraram, diante da rejeição popular ao candidato da direita, ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, às eleições presidenciais, de outubro de 2018. O candidato da ultradireita, o ex-capitão do Exército, Jair Bolsonaro, se potenciou no quadro da crise política do governo Temer, que acabou expondo a podridão do MDB, PSDB e DEM. Apesar dos escândalos que envolveram o PT, e, com ele, a prisão de Lula, a ascendência eleitoral do reformismo sobre uma importante parcela da população oprimida evidenciou que ainda tem um papel a cumprir a serviço da burguesia. Em outras palavras, o esgotamento do reformismo não se concluiu. Sob o governo Temer, o PT permaneceu, em grande medida, isolado. Não foi capaz de se destacar como oposição, embora a crise política se tenha agravado com as denúncias da Procuradoria Geral da República, PGR, que apresentou provas concretas da bandidagem de Temer e sua camarilha. Ocorre que as denúncias de corrupção contra o governo do PT, processos e prisões de alguns de seus principais dirigentes atingiram as ilusões de uma parcela considerável dos explorados no reformismo.

A derrocada do candidato da direita, a disputa do PT com o candidato da ultradireita e o bom desempenho de Fernando Haddad oxigenaram as hostes petistas. A crise prematura do governo Bolsonaro permitiu a quebra gradativa de seu isolamento. O PT procurou se aproximar de todas as variantes que se apresentassem como oposição a Bolsonaro. Abandonou a caracterização eleitoral de que o País estava diante da iminência do fascismo. Voltou a bater na tecla da defesa em abstrato da democracia. Mostrou-se incapaz de pôr em pé um movimento contra a reforma da Previdência. Foi responsável pela traição da CUT e demais centrais à greve geral de junho de 2019. Procurou, assim, mostrar à burguesia a importância de sua política de colaboração de classes. Por esse caminho, o PT foi se reabilitando.

A manifestação da pandemia no Brasil acelerou a crise política. A divisão interburguesa em torno ao isolamento social permitiu ao PT recuperar parte de seu patrimônio político no interior da oposição burguesa, que se ampliou com a desintegração da aliança no campo da direita e ultradireita. O PT se aproximou da direita burguesa, que se levantou como oposição à linha de Bolsonaro, contrária à dos governadores quanto ao isolamento social. Nota-se uma importante mudança na situação política, em que o governo Bolsonaro caminhou para o isolamento, cada vez maior, sustentando-se, principalmente, nos militares, policiais, alguns grupos empresariais e camadas da classe média alta. Cresceu, por outro lado, a oposição de expressivos setores da burguesia, de maneira que Bolsonaro passou a ser acuado pela grande imprensa. A exoneração de Mandetta, a escandalosa reunião ministerial de 22 de abril, e a renúncia de Moro alentaram a oposição de centro-esquerda a pleitear o impeachment do presidente. Internamente, o PT abriu a discussão sobre a bandeira do “Fora Bolsonaro” e do impeachment. Em seguida, a maioria das correntes de esquerda aderiu à bandeira do impeachment, dando expressão institucional ao “Fora Bolsonaro”.

A ideia de Fernando Henrique Cardoso, de que Bolsonaro deveria renunciar por incompetência e entregar a presidência ao vice, Hamilton Mourão, avivou as hostes oposicionistas, da direita à esquerda reformista.  As correntes de esquerda centristas, por sua vez, viram a oportunidade de propagandear o “Fora Bolsonaro”. Como não poderia deixar de ser, o oportunismo agregou o “Fora Mourão”. Repete-se o diapasão do “Fora Temer”. Os centristas, que têm por característica esquerdizar a posição dos reformistas, não refletiram, minimamente, sobre o significado de seu apoio ao movimento parlamentar pelo impeachment, que passou a ser liderado pelo PT.  Não há dúvida de que essa bandeira burguesa expressa a profundidade da crise política, que se ampliou com a saída de Moro, atirando contra seu padrinho político.

A divulgação da reunião ministerial jogou combustível na fogueira da crise política. O conflito em torno à denúncia de Moro sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, com objetivo de proteger seus filhos, acusados de corrupção e vínculo com as milícias do Rio de Janeiro, ganhou uma maior proporção, diante da fala do ministro da Educação, de que se deveria prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal (STF). Abraham Weintraub ecoou na reunião os gritos golpistas dos bolsonaristas, pedindo o fechamento do STF e do Congresso Nacional. Na realidade, a reunião, como um todo, transpareceu a incapacidade de Bolsonaro e seus militares de disciplinarem os demais poderes da República. Se tivesse força política, Bolsonaro já teria imposto a centralização burocrático-militar, tipicamente bonapartista.

A reunião ministerial foi o retrato da impotência deste governo, que não reuniu as condições econômicas e políticas para reverter a crise de governabilidade, instaurada desde o naufrágio do governo Dilma Rousseff. A pandemia o deixou à deriva. Ampliaram-se os conflitos institucionais, em torno às medidas de enfrentamento ao coronavírus, principalmente no que diz respeito à formulação da política burguesa baseada no isolamento social. Bolsonaro se viu diante do despertar das contradições históricas da estrutura federativa, sobre a qual se assenta o Estado Nacional. Os adjetivos e os impropérios, lançados contra os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro, traduziram o desespero do presidente da República, por não conseguir se impor como força centralizadora, capaz de esmagar as manifestações de autonomia federativa dos estados. Desde o início da pandemia, Bolsonaro e a maior parte dos governadores se colocaram em posição de confronto, potenciando as forças centrífugas inerentes à política burguesa, assentada na centralização burocrático-militar.

O fim da ditadura dos generais, em 1985, e a democratização reataram velhos conflitos federativos, sob uma nova roupagem, condicionados pelo desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo atrasado e semicolonial. Na presente situação, os dois estados mais poderosos do País – São Paulo e Rio de Janeiro – procuraram conduzir as respostas à pandemia. O fato de contar com o apoio de vários governadores do Nordeste e Norte enfraqueceu o governo federal. A enxurrada de pedidos de impeachment, cada partido com o seu, PDT, PSB, PSOL, Rede, PV, e o da frente encabeçada pelo PT (PT, PSOL, PCdoB, PCB, PCO, UP, PSTU), incomodou Bolsonaro pelo fato de ter aberto um campo de coalizão, que poderá se estender, caso a crise política leve a uma maior desintegração do governo.

As negociatas do núcleo militar do governo com partidos e políticos do “Centrão” se tornaram uma contingência, para assegurar a governabilidade diante do período pós-pandemia, que será de avanço da crise econômica e social, bem como montar uma trincheira anti-impeachment no Congresso Nacional. A ameaça golpista proferida pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, apoiado pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, seguido de um Manifesto de militares da reserva, elevou a temperatura dos atritos com o STF.  A negativa peremptória de Bolsonaro de não entregar o celular presidencial à justiça criou um impasse, que deve ser resolvido pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras. Tudo indica que o escarcéu sobre a interferência do presidente na Polícia Federal morrerá nas mãos de Aras, cuja indicação ao cargo foi feita a dedo por Bolsonaro.

A espetacular ação da PF no Rio de Janeiro contra o governo Witzel, acusado de corrupção na instalação de hospitais de campanha e compra de equipamentos, é mais um episódio do conflito federativo. A firmeza com que Witzel denunciou Flávio Bolsonaro, e a atitude contemplativa da Polícia Federal diante de provas existentes do seu vínculo com o esquema de corrupção na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, indicam que as tendências centrífugas continuam a operar como poderosa força desintegradora da política burguesa. Apesar da operação policial ter sido autorizada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), não há dívida de que expressou uma contraofensiva do núcleo militar do governo Bolsonaro.

O descontentamento de setores da burguesia com Bolsonaro, no entanto, não chega ao ponto de apoiarem o impeachment. Essa bandeira se circunscreve à oposição de centro-esquerda. Os partidos orgânicos da burguesia oligárquica – MDB, PSDB e DEM – não estão pela radicalização da crise política. O que, certamente, ocorreria, se o impeachment ganhasse corpo no parlamento e nas instituições judiciárias. O maior risco do governo Bolsonaro se encontra na investigação do vínculo de seu filho, Flávio Bolsonaro, com as milícias do Rio de Janeiro. A intervenção na Polícia Federal tem o objetivo de impedir que as forças opositoras do Estado acabem por cercar Bolsonaro, por meio de revelações que tornariam sua continuidade na presidência insustentável. A ação dos ministros militares procura proteger o calcanhar de Aquiles do presidente. A ameaça do general Heleno colocou uma espada de Dâmocles sobre o judiciário. É difícil prever os próximos elos da crise política, que tende a se agravar com a quebra econômica do País.

Embora a crise política esteja em pleno desenvolvimento – quase que diariamente há um fato que complica a governabilidade –, a sobrevivência de Bolsonaro não está ameaçada. Enquanto perdurar a pandemia, as forças burguesas em conflito se limitarão à tática do desgaste eleitoral. O impeachment e o “Fora Bolsonaro” não ultrapassam esse limite. Nota-se que não há sequer unidade no campo da centro-esquerda, que utiliza a figura do crime de responsabilidade para aparecer nos noticiários, que maciçamente estão contra Bolsonaro. A experiência da cassação de dois mandatos, Collor e Dilma, mostra que o impeachment depende da constituição de uma ampla frente burguesa e mobilização da classe média. A classe operária se desintegrou com o isolamento social. Volta aos poucos ao trabalho, temerosa e desorganizada.

O palavreado esquerdista, de que se trata de tirar Bolsonaro e Mourão para defender os explorados diante do avanço da pandemia, chega ao absurdo, uma vez que a classe operária e demais oprimidos se encontram completamente desorientados, sem saber se os empregos serão garantidos. A posição de que a tarefa do momento é a de levar para as massas a bandeira do “Fora Bolsonaro” cai no vazio. Os esquerdistas não fazem questão de explicar o mecanismo e o conteúdo do impeachment, que é a via de realizar o “Fora Bolsonaro”.  Não podem admitir que o impeachment é uma bandeira burguesa, cuja função tem sido a de servir ao golpe de Estado. E o “Fora Bolsonaro”, eleitoral. Quixotescamente, querem fazer crer que são a linha de frente da luta contra o governo ultradireitista. Acabaram por se unir por trás do PT em torno ao pedido de impeachment.

As centrais sindicais selaram essa unidade, sob a bandeira “Pela vida, democracia, emprego e renda. Fora Bolsonaro!” Ocultam que seus sindicatos colaboraram com a aplicação da MP 936, realizando acordos de redução salarial. Não fizeram nenhuma campanha contra as demissões e pelos empregos. Refugiaram-se nas “manifestações virtuais”. Adaptaram sua política e suas bandeiras à divisão interburguesa em torno ao isolamento social, alinhando-se aos governadores, como se fosse o caminho para defender a vida dos explorados e combater o governo Bolsonaro. Não reconheceram que a limitação e o fracasso dessa medida se deveram, em última instância, ao poder econômico. As centrais passaram a colocar cartazes pelo “Fora Bolsonaro”, seguindo o rastro da divisão interburguesa. Durante os três meses de pandemia, não combateram o governo, Congresso Nacional e governadores com as bandeiras da classe operária, contra a redução salarial e as demissões. Utilizaram o 1º de Maio virtual para dar voz a representantes da burguesia. Como se vê, o PT, seus aliados, os esquerdistas oportunistas, as centrais e os movimentos terminaram por se unir, sob a bandeira burguesa do impeachment. Negaram-se a responder com a política da classe operária à pandemia, assim que essa foi anunciada, desmontando o “Dia Nacional de Luta”, 18 de março. Agora, que o isolamento social se esgotou como política burguesa e os assalariados voltam ao trabalho, armam um canal para manter a atenção dos explorados na política da oposição burguesa, embandeirada com o impeachment.

Não será nesse terreno institucional burguês que as massas enfrentarão o governo Bolsonaro. Ao contrário, se forem canalizadas por essa política, renunciarão às suas reivindicações, métodos e estratégia própria. É dever da vanguarda com consciência de classe rejeitar, denunciar e rechaçar a frente oposicionista burguesa, ao mesmo tempo em que organiza a luta contra o governo Bolsonaro e o conjunto das forças burguesas, que descarregam a desintegração do capitalismo sobre a maioria oprimida. É imprescindível não confundir a frente de esquerda pelo “Fora Bolsonaro” e impeachment como sendo expressão da política da classe operária. Como expressão da política burguesa de oposição, deve ser denunciada em sua política de conciliação de classes. O governo burguês de Bolsonaro, bem como as variantes oposicionistas, que trabalham por substituir um governo dos capitalistas por outro, serão combatidos pelos explorados com seu plano de reivindicações e a luta de classes. A estratégia de combate a qualquer governo burguês é a do governo operário e camponês, expressão da ditadura de classe do proletariado.

A tarefa do momento é a de preparar a classe operária para sua volta ao trabalho, para defender os empregos, salários e direitos trabalhistas. Retomar a democracia operária, convocando as assembleias. Defender os empregos, salários e condições médico-hospitalares. Aprovar um plano próprio de emergência, que de fato proteja a vida da maioria oprimida. Derrubar as medidas antinacionais e antipopulares de Bolsonaro, Guedes, Doria e Maia. Pôr em pé um movimento nacional, organizado desde as bases. Construir os comitês de defesa das condições de existência dos explorados. Constituir uma frente única anti-imperialista, sob a direção da classe operária. Assim, combater o governo burguês ultradireitista, de Bolsonaro, com o plano de emergência, a organização independente e os métodos da luta de classes.