• 11 ago 2020

    100 mil mortos, e a pandemia continua matando

100 mil mortos, e a pandemia continua matando

Apenas parte da tragédia cabe ao coronavírus

10 de agosto de 2020

Em 8 de agosto, a aguardada marca dos 100 mil mortos foi atingida. As centrais sindicais marcaram um “Dia Nacional de Luto” para o dia 7, uma sexta-feira. Foi possível o cálculo, com erro apenas de um dia, porque o coronavírus faz uma média de mil mortos diariamente. É com base nessa média que especialistas estimam que o Brasil poderá arcar com 150 mil ou 200 mil mortos. Os meios de comunicação continuam a divulgar os conselhos da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que não se deve baixar a guarda. No momento, os governantes procuram amortecer suas responsabilidades, com a propaganda sobre o andamento precoce das vacinas. Não têm como esconder que, por trás dessa corrida, estão os interesses das multinacionais e das potências.

Não se sabe ainda a capacidade de persistência do vírus em manter a onda de contaminação e, com ela, os óbitos. Mesmo assim, o poder econômico mantém firme a decisão de acabar, definitivamente, com o isolamento social. Tornou-se visível a incapacidade do capitalismo de fazer frente à pandemia, no que diz respeito à sua proliferação sobre as massas pobres, miseráveis e famintas. Essa verdade foi exposta pelos acontecimentos. Certamente, nenhum governo, nenhuma autoridade coloca a questão nesses termos.

Apesar de diferentes atitudes políticas dos governos, em cada país, no fundamental, convergiram no sentido de que, o que poderiam fazer, foi feito. Lamentam as mortes, mas entendem que a vida continua. Em outras palavras, chegou o momento em que os capitalistas não mais poderiam assumir o isolamento social. Manter parte da força de trabalho fora da produção resulta em redução dos lucros e perda de capitais. Os pequenos e médios capitalistas viram que o prolongamento do “fique em casa“, não apenas atingia, momentaneamente, seus negócios, como os ameaçava ou os levava a quebras. As famílias que, por sua vez, sobrevivem do comércio informal logo se ressentiram da extraordinária diminuição de sua renda. As medidas de proteção social serviram apenas para amenizar a interrupção das atividades de milhões de informais e subempregados. Não era possível manter essas condições por muito tempo.

A quebra de micro e pequenos empresários e as demissões em massa se combinaram de tal maneira, que se levantaram como um obstáculo à continuidade do isolamento social, mesmo que tenha sido parcial. A Medida Provisória (MP 936) deu margem de manobra a uma parcela dos empregadores, mas não foi possível ser assumida, na proporção concebida pelo governo e Congresso Nacional. De maneira que uma parte reduziu os salários, e outra preferiu demitir. E, mesmo entre aquela que aplicou a MP 936, houve aqueles que acabaram demitindo. Em poucos meses, foram extintos 8,9 milhões de postos de trabalho. Vertiginosamente, a parcela da população desempregada e que não procura emprego, deu um salto, para 77,8 milhões. Segundo o IBGE, seriam precisos 40,5 milhões de novos postos de trabalho, para incorporar aqueles que desejam um emprego. Independentemente da discussão sobre o método estatístico que aufere o desemprego, o fato é que, com a pandemia, ocorreram milhões de demissões.

Considerando de conjunto esses fatores, se observa que a contrariedade dos grandes capitalistas em manter a produção em baixa escala, a indisposição dos pequenos e médios em seguir com seus negócios inativos, a indisciplina dos informais em acatar a quarentena, o fracasso parcial da MP 936 em evitar demissões em massa, e as pressões sociais do desemprego em alta, forçaram a quebra do isolamento social.

Se não se analisa o enfrentamento ao coronavírus, tendo em mãos essa confluência de fatores, que ficou ao encargo dos governantes, não se entende por que era inevitável o fracasso do isolamento social, como método fundamental à disposição da ciência. A experiência com epidemias e pandemias anteriores, e o conhecimento adquirido sobre o novo vírus, indicavam que a sua contenção relativa dependia da maior ou menor interrupção da transmissão. Não se tinha, no entanto, a experiência econômica e social de sua aplicação.

As divergências no interior da burguesia e dos governos sobre a magnitude de sua aplicação expuseram, logo de início, que o isolamento social resultaria em desastres na economia mundial, que já se encontrava em estágio de queda recessiva. Uma outra ordem de constatação a ser considerada era e é a diferença entre as potências e as semicolônias, e, inclusive, entre elas mesmas. Os efeitos econômicos do isolamento social são mais ou menos semelhantes, no geral, mas se distinguem profundamente nas condições particulares de cada país. A potencialidade econômica, as condições de emprego, subemprego e pobreza das massas variam, bem como a escassez ou fartura de recursos em mãos dos Estados Nacionais. Não menos importante, são as divergências no interior do poder do Estado, assim como a relação dos sindicatos com o parlamento e partidos da ordem capitalista. Nos Estados Unidos e Brasil, se destacou a resistência de Trump e Bolsonaro em abraçarem a orientação da OMS. Não se tratava, porém, de antagonismos de fundamento de classe, mas de maior ou menor aceitação das consequências econômicas, sociais e políticas da diretriz do isolamento social.

A marca dos 100 mil mortos no Brasil foi lembrada na situação em que a belicosidade entre Bolsonaro e boa parte dos governadores em torno ao isolamento social se encontrava, em grande medida, arrefecida. O governador de São Paulo, Doria, que liderou a divergência de orientação com Bolsonaro, tomava à frente da “flexibilização” do isolamento social. Havia se colocado, portanto, sob a diretriz original de Bolsonaro, ao ponto de elogiar o general e ministro da Saúde, Pazuello. Essa mudança política deixou transparecer que a divergência inicial era circunstancial. No final das contas, o poder econômico ditou as ordens aos governadores, incluindo aqueles mais à esquerda, colocando-os sob a tutela de Bolsonaro.

Os reformistas, PT e aliados, assumiram o isolamento social, como se estivessem no campo de batalha entre a ciência e a não ciência, entre os defensores da vida e os da morte. Alinharam-se ao governador de São Paulo, como se esse expressasse o campo progressivo do combate ao coronavírus. Assim que os empresários passaram a dar apoio ativo a Bolsonaro, o isolamento social foi quebrado, e os governadores ligados aos reformistas fizeram também a virada. Mudança essa que pôs às claras a demagogia sobre a defesa da vida. O PT e aliados, no entanto, fecharam os olhos para o que ocorria em seu próprio quintal. O governador do Maranhão, Flávio Dino, PCdoB, teve a audácia de propor um pacto a Bolsonaro, em nome dos empregos. Os governadores da oposição se mantiveram agarrados ao isolamento social, até o momento em que o poder econômico exigiu a mudança geral de curso. O PT e aliados nada puderam fazer, a não ser sustentar a farsa da bandeira da defesa da vida contra o “genocida” Bolsonaro. Essa bandeira continua a ter valor nas disputas eleitorais.

As centrais sindicais, controladas por uma das frações oposicionistas ao governo, principalmente, a direção da CUT e Força Sindical, se submeteram completamente à política burguesa do isolamento social. Essas direções, cinicamente, resistem a reconhecer que o isolamento social fracassou, e está em vias de se extinguir, uma vez que apenas a educação e alguns poucos setores do funcionalismo continuam em quarentena. O fato de receberem o salário integral, e os efetivos terem seus empregos garantidos, permitiu que se mantivessem em quarentena, e, inclusive, resistirem voltar ao trabalho. Não por acaso, esse é o único ponto de conflito político dos reformistas com os governadores. O que lhes dão alguma margem de manobra, principalmente, porque envolve os estudantes, cujos pais, com razão, temem a contaminação. Fora essa pendência, o isolamento social já não existe para a maioria da classe operária e demais explorados.

Essa descrição evidencia a conduta leviana da burocracia sindical, que ajudou a implantar a política burguesa do isolamento social, desarmando o Dia Nacional de Luta, de 18 de março, e evitando a organização da classe operária e demais oprimidos, para tivessem uma resposta própria à pandemia e às suas consequências sociais e econômicas. As correntes de esquerda, por seu lado, não tiveram outra política, senão a de seguir os passos do PT, aliados e burocracia sindical. É o que explica sua adesão à bandeira diversionista de impeachment, defesa da democracia e “Fora Bolsonaro”.

Com as massas completamente desorganizadas e temerosas, não só diante da pandemia, mas também das demissões e desemprego, é impensável uma luta séria, classista e revolucionária contra o governo Bolsonaro. Por cima dos explorados – de seus mortos, desempregados e empobrecidos–, eclodiu a mais contundente crise política do governo Bolsonaro. E, agora, as forças da conciliação vêm procurando contornar a derrocada do governo direitista, tendo em vista a possibilidade do agravamento da luta de classes no próximo período. O PT, aliados, burocracia sindical e seguidistas de esquerda também desenvolveram a política opositora, nas condições de profundo refluxo dos explorados, e sob a chancela da política burguesa do isolamento social.

O “Dia Nacional de Luto”, 7 de agosto, expressou o conservadorismo e o reacionarismo da burocracia sindical, que segue a oposição burguesa.  Ao contrário de trabalhar para romper o temor dos explorados e a sua desorganização, essas direções continuam com o palavreado de defesa da vida, abrigados na bandeira do isolamento social, que já não existe.

Os 100 mil mortos foram lembrados pelo Congresso Nacional. Decretou-se luto oficial. Rodrigo Maia discursou, dizendo que não se deve naturalizar as mortes e que “cada vida é única e importa“. O Supremo Tribunal Federal foi na mesma linha. Os representantes da burguesia – que aprovaram a MP 936, que reduz salários, e o “orçamento de guerra”, para proteger, principalmente, o capital financeiro – se põem em luto, para ocultar a sua responsabilidade pela mortandade. E as centrais sindicais se puseram de luto, para ocultar sua responsabilidade de ter assumido a política burguesa do isolamento social. Os explorados não precisam de luto, mas de organização da luta pelos empregos, salários, direitos e saúde pública.

A tarefa da vanguarda revolucionária é a de rechaçar e denunciar a impostura daqueles que se vestem de luto, e continuam esmagando a vida da maioria oprimida. É a de fazer campanha nas fábricas, demais locais de trabalho, bairros e nas ruas, em defesa de um plano de emergência próprio dos explorados. É batalhar para que os sindicatos convoquem assembleias e constituam comitês de empregados e desempregados. É mostrar à classe operária e demais oprimidos que têm uma estratégia revolucionária de poder, que é a luta por um governo operário e camponês. É, enfim, ajudar o proletariado a superar o golpe levado, a desorganização e a ausência de independência política diante da burguesia e seus governos.