• 30 jan 2021

    Novos episódios da guerra da vacina

Novos episódios da guerra da vacina

Laboratórios se impõem diante dos governos
Resposta dos explorados: estatizar, sem indenização, sob o controle operário de produção

29 de janeiro de 2021

As medidas parciais do isolamento social serviram para dificultar a rápida contaminação local e mundial. Estava claro que teriam um resultado limitado. A saúde pública se mostrou incapaz, e muito aquém das necessidades emergenciais criadas pela pandemia. As massas empobrecidas se viram desprotegidas. Os burgueses e a alta classe média contaram com o dinheiro e uma rede de saúde privada, estruturada com um corpo médico e auxiliares selecionados, bem como a uma requintada tecnologia. Para a minoria abastada, não faltaram leitos, UTIs e rigorosos cuidados. Para receber a maioria pobre infectada, os governos tiveram de improvisar hospitais de campanha, que, no caso do Brasil, logo foram superlotados. Milhares morreram sem nenhuma assistência. E milhares em condições de má assistência.

Assim que a pandemia deu sinais de arrefecimento, os governos flexibilizaram o isolamento social e desarmaram a estrutura emergencial. Não demorou muito, a contaminação e as mortes voltaram a crescer. Identificou-se, no Reino Unido, a mutação do Covid-19 em uma variante mais contagiosa. No Brasil, o estado do Amazonas voltou a cair no precipício, e também com uma nova variante. Desta vez, em queda mais vertiginosa. A população se viu no mais completo desamparo, ao ponto de faltarem até mesmo os cilindros de oxigênio. Isso à vista do governo federal e da constatação de corrupção. O que parecia ser um caso específico do Amazonas, logo se manifestou em Rondônia e, inclusive, em estados como Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, etc.

O quadro da pandemia no Brasil retrata bem a barbárie capitalista, mas, em outras partes do mundo, não é muito diferente. A Europa conta com 690 mil mortes; Estados Unidos, 433 mil; Brasil, 223 mil (números arredondados). No mundo, 2.200.000 óbitos. Esses números continuam a aumentar, dia a dia. Novas tentativas de isolamento social têm sido realizadas, no entanto, já não se confia nesse meio puramente técnico e limitado, cujas consequências econômicas e sociais agudizam a crise capitalista mundial.

Durante meses, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e governos propagandearam que as vacinas estavam em estado avançado de pesquisa. Chegou o momento em que se tratava apenas da comprovação final, por meio de testes comprobatórios da eficácia imunizante e da segurança clínica. Desde julho, quando se anunciou que pelo menos 166 vacinas estavam sendo pesquisadas, se evidenciou que haveria uma corrida econômica e política. Projetaram-se, finalmente, um pequeno número de laboratórios, sem que se soubesse o que se passou com os demais. Não é surpreendente que restaram pouco mais de uma dezena. Entre eles, se impuseram a Pfizer-BioNTech, Moderna, Oxford-AstraZeneca, Sinovac/Sinopharn, Johnson&Johnson, e Gamaleya (Sputnik V). E, sobre esse pequeno número, tem imperado a Pfizer. Três laboratórios norte-americanos e um inglês poderão controlar o processo de imunização mundial. Os laboratórios chineses, que deram início à pesquisa, vêm sofrendo uma brutal concorrência. No Brasil, chegou a ocorrer uma campanha suja para desmoralizar a Coronavac.

Os monopólios imperialistas aproveitam a lei da oferta e procura para influenciar a política de vacinação dos governos. As vacinas testadas e aprovadas pelos órgãos reguladores poderiam ser um instrumento de intervenção capaz de, em um tempo relativamente curto, interromper o avanço da pandemia, e retomar a normalidade. A OMS tem condições para centralizar um plano mundial, de forma que todos os países sejam atendidos de acordo com as necessidades. No entanto, limitou-se à fracassada Covax, medida que contou com a Aliança Global de Iniciativas de Vacina (Gavi, sigla em inglês), e Coalizão de Preparação para Inovação em Epidemias (CEPI). O objetivo seria o de permitir o “acesso igualitário às diversas vacinas”.

A OMS previa que os países ricos comprariam maciçamente a produção, e os países pobres aguardariam na fila de espera. Com a Covax, se teria um fundo criado com a contribuição dos países, com o qual se adquiririam as vacinas dos diversos laboratórios, e se as distribuiriam entre os associados. Ocorre que a OMS já não tinha relevância que teve no momento em que orientou os governos a aplicarem o isolamento social. Agora, as iniciativas passaram para as mãos dos monopólios, que apenas se importam com a concorrência e a lucratividade. Os países que podem comprar em grande quantidade são prioritários. Ao capital, não importa quem mais precisa, mas quem pode pagar. A hipócrita bandeira de “defesa da vida”, que tremulou nos mastros da burguesia, aos quais os reformistas e burocratas sindicais se agarraram com as duas mãos, quando prevalecia a diretriz do isolamento social, foi arriada, diante dos poderosos laboratórios.

No Brasil, a justa denúncia de que Bolsonaro era um “genocida”, porque negava a virulência da pandemia, e se opunha ao isolamento social, ocultou que o “genocídio” era de responsabilidade, antes de tudo, da burguesia. O que era um pouco difícil de se ver e compreender, uma vez que os governadores opositores, liderados por João Doria, aplicavam o isolamento social, sob a bandeira de “defesa da ciência e da vida”.  A guerra da vacina, porém, rasgou a máscara da mentira e do cinismo burgueses. O jogo entre Bolsonaro e Doria, em torno às vacinas Sinovac e a Oxford-AstraZeneca, retardou a evidência de que todos os governantes, sem exceção, se submeteram aos monopólios e à consequente guerra das vacinas. Enquanto isso, o Butantan e a Fiocruz não têm como agilizar a produção de vacinas.

A impossibilidade de o Brasil adquirir a quantidade necessária de vacinas, para um primeiro combate ao coronavírus, jogou por terra a dissenção entre o governo federal e os governos estaduais. O problema é que, nem o laboratório Sinovac, nem o AstraZeneca, oferecem o volume de doses que as condições da pandemia no Brasil exigem. Uma das críticas contundentes dos governadores oposicionistas, de que o ministério da Saúde não tinha um plano nacional de vacinação, e uma das crises federativas mais profundas, que emergiu com a ameaça do estado de São Paulo de iniciar a vacinação por conta própria, evaporaram, diante do simples fato de que o país não tem uma quantidade de vacinas que permita concretizar o Plano Nacional de Imunização (PNI). Por incrível que pareça, em meio a esse problema, veio à tona a falta de seringas, cuja boa parte da produção havia sido exportada.

O conflito nacional em torno às vacinas, na realidade, é parte, e até certo ponto um reflexo, do que se passa em nível internacional. No seu centro, estão os Estados Unidos, com suas gigantescas compras da Pfizer e da Moderna. De 400 milhões de unidades, o presidente Biden afirmou que elevará a 600 milhões. Os dois laboratórios terão de atender primeiramente a maior potência. Para isso, os Estados Unidos tomaram medidas para impedir as exportações, enquanto não forem cumpridas as exigências internas. O Canadá tem uma população de 38 milhões de habitantes, e o governo de Trudeau declarou ter comprado mais de 400 milhões de doses. Somadas com as dos Estados Unidos, alcançam 1 bilhão de doses. Os países mais ricos encomendaram 2,2 bilhões de doses, que, segundo informações, estão “acima do que precisam para imunizar suas populações”. Essas mega compras elevam o preço do produto. Na Europa Ocidental, até mesmo as potências, como a Alemanha, reclamam da escassez de vacinas. O conflito entre a União Europeia e o Reino Unido, tudo indica, expressa a crise do Brexit. A fábrica da AstraZeneca, localizada na Bélgica, passa por uma inspeção da Comissão Europeia, devido à suspeita de contrabandear parte da produção para o Reino Unido, deixando assim de cumprir o contrato estabelecido com a União Europeia. A probabilidade de que os laboratórios estão desviando vacinas para grupos empresariais, apesar dos desmentidos, é verossímil. O caso da AstraZeneca é bem concreto, tendo por detrás o fundo de investimento Blackrock.

No Brasil, poderosos capitalistas, a exemplo da Gerdau e Marco Polo Lopes, se agruparam para constituir um fundo privado, a ser aplicado na compra de vacinas. Sua ligação com a Blackrok ficou obscurecida, mas o objetivo de adquirir 33 milhões de doses da AstraZeneca foi confirmado. Bolsonaro, o “genocida”, autorizou os burgueses “genocidas” a traficarem por cima da população e do SUS. Não houve nenhuma rebelião dos governadores opositores, denunciando a jogatina do grupo empresarial. A notícia, porém, foi tão contundente, que a Fiesp tomou a iniciativa de acobertar o caso e promover o recuo. A Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) considera legal a compra de vacinas por particulares, e informou que estava negociando com o laboratório indiano Bharat Biotech a compra de 5 milhões de doses. É notório o interesse da rede privada de hospitais de ter assegurado seus negócios com a vacinação.

A reclamação do diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, de que a desigualdade na distribuição da vacina leva à “falência moral catastrófica” só faz expor a impotência da OMS diante dos monopólios. O fato de 56 milhões de pessoas terem sido vacinadas, em 51 países, sendo que a imensa maioria se concentra nos mais ricos, dá a dimensão da barbárie capitalista. Não só se limita ao pequeno número de países com recursos, como também, na maioria dos países que compõem o mundo (193), sequer se iniciou a vacinação. A conclusão de que o continente africano está muito longe de se valer da imunização corresponde à divisão entre países imperialistas e países semicoloniais, entre nações opressoras e nações oprimidas, entre uma minoria de potências ricas e a imensa maioria de nações pobres. O mesmo se passa com a divisão da população em classes sociais. Não há dúvida de que a minoria abastada terá garantida seus privilégios. O POR afirmou, desde o início da pandemia, que se tratava antes de tudo de um problema de classe. Os ditames dos monopólios dão a dimensão mais exata de que se trata de um problema antes de mais nada de classe e de opressão nacional.

O desarme político, ideológico e organizativo do proletariado permaneceu oculto durante todo esse processo. Isso se deve à capitulação da esquerda reformista e da burocracia sindical à política burguesa do isolamento social e, na fase atual, aos monopólios imperialistas. Sem uma política, uma ideologia e uma organização próprias, o proletariado não teve como reagir à mais profunda crise do capitalismo, que se tem no pós-segunda guerra mundial. A crise de direção revolucionária salta à vista.

A classe operária internacional obteve conquistas programáticas e organizativas em importantes períodos do século passado. Objetivamente, foi perdendo, com o processo de restauração capitalista nos países que instauraram a transição do capitalismo ao socialismo, ao ponto de se configurar uma das regressões históricas mais profundas. Subjetivamente, no entanto, as conquistas teóricas e programáticas do marxismo-leninismo-trotskismo continuam a nortear o caminho da vanguarda revolucionária, que tem a tarefa de resolver a crise de direção, construindo os partidos da revolução e ditadura proletárias e reconstruindo o Partido Mundial da Revolução Socialista, a IV Internacional.

A tragédia por que passa o mundo e a falência da burguesia em estancá-la obrigarão a classe operária a percorrer um caminho mais consciente da luta de classes, que se vinha projetando bem antes de eclodir a pandemia. O choque das massas com o domínio dos monopólios e a opressão imperialista fará emergir as antigas conquistas das revoluções proletárias, principalmente a que se desenvolveu na Rússia, no início do século.

A sanha dos laboratórios em ditar o curso do combate à pandemia à maioria dos países é a expressão genuína da decomposição do capitalismo monopolista. Ao submeter a saúde e a vida de bilhões de pessoas a um punhado – pouco mais de uma dúzia, que colocam acima de tudo a disputa de mercado e o lucro –, se evidencia o caráter parasitário da burguesia mundial, e do completo esgotamento das relações capitalistas de produção.

O proletariado somente não se ergue pelo seu programa de expropriação dos monopólios e a transformação da propriedade privada dos meios de produção em propriedade social devido à ausência do seu Partido Mundial da Revolução Socialista. Significa que, se os explorados não se libertarem das direções traidoras e conquistarem sua independência política, terão de padecer ainda mais com o avanço da barbárie. Não se pode atravessar essa mortandade mundial, sem se tirar as conclusões estratégicas, que levam à luta das massas contra a burguesia, seu Estado e a propriedade privada dos meios de produção.

Não se podem desvincular as contradições do capitalismo, que se refletem no controle monopolista da ciência e da indústria químico-farmacêutica, das contradições que vêm provocando a quebra maciça de forças produtivas e a gigantesca onda de desemprego. A pandemia não faz senão potenciar as tendências de desintegração das forças produtivas mundiais. A vacinação universal é o único recurso efetivo que a burguesia tem para conter as consequências negativas sobre a economia e a vida das massas. Mas não pode concretizá-la, devido aos interesses particulares dos monopólios e do capital financeiro. A burocracia sindical e os reformistas de esquerda reclamam urgência na vacinação, para que tudo volte à normalidade, cessem as demissões e se retomem os empregos. Colocam assim as condições de existência da classe operária e demais explorados na dependência dos monopólios e da capacidade dos capitalistas de reerguerem a economia mundial.

Os explorados arcam, ao mesmo tempo, com a devastadora pandemia e com a ampla destruição de postos de trabalho. Confiar à burguesia a tarefa de recuperar as condições de vida das massas resulta em continuar protegendo os interesses dos monopólios em detrimento da força de trabalho. A renúncia das organizações operárias, manipuladas pela burocracia colaboracionista, em defender os empregos, salários e direitos se converte, objetivamente, em renúncia à luta pela vacinação universal. Em outras palavras, à renúncia da luta anti-imperialista, que, no momento, comparece na forma de combate ao domínio do monopólio sobre a ciência e a indústria da saúde; e na forma de luta contra o fechamento de fábricas e demissão em massa. Eis por que, diante da extinção de fábricas pela Ford, Mercedes e outras, a burocracia sindical se negou a recorrer ao método da ocupação de fábrica, do controle operário da produção e à bandeira de estatização sem indenização dos monopólios. De maneira que a classe operária, desorganizada e acuada pela crise, não teve como se erguer como uma força social, capaz de dirigir a maioria nacional oprimida contra a burguesia e seu governo, que se encontram submetidos aos monopólios e ao capital financeiro.

A vanguarda com consciência de classe marcha na contracorrente dos acontecimentos, contando a seu favor com a confluência entre o programa da revolução proletária e as condições objetivas de desintegração do capitalismo. A sua força está em não perder o norte estratégico, e não desviar as bandeiras que de fato respondem às necessidades imediatas e históricas da classe operária.