• 23 mar 2024

    Editorial: 60 anos do golpe militar

Editorial do Jornal Massas nº 710

60 anos do golpe militar

As raízes da atual crise política

Em 31 de março/1º de abril, o golpe militar completa 60 anos. O presidente Lula decidiu que não ocorreriam manifestações oficiais. O ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, se viu obrigado a cancelar uma cerimônia governamental que aconteceria em 1º de abril. O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, certamente convenceu o presidente de que a situação política não era propícia. O melhor a fazer seria obter um acordo com as Forças Armadas para que também não colocassem na ordem do dia a data do golpe. O governo Bolsonaro havia instigado os militares a defender os 21 anos de regime ditatorial. Em vez de golpe, haveria de se dizer “revolução de 1964”. O que teria salvado o Brasil da anarquia social e do comunismo. Essa foi justificativa da versão dada pelos Estados Unidos, que estiveram por trás dos generais que organizaram a conspiração para derrubar o governo nacionalista de João Goulart.

A Revolução Cubana de 1959 representou uma derrota para o domínio completo dos Estados Unidos sobre a América Latina. Prevalecia a estratégia da “Guerra Fria” para derrubar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A vitória do movimento nacionalista de 26 de Julho liderado por Fidel Castro contra a ditadura de Fulgêncio Batista confluiu com uma situação convulsiva no continente latino-americano. As lutas camponesas e operárias tendiam a se juntar contra os governos e as oligarquias latifundiárias. No Brasil, sob o governo de João Goulart se potenciaram as Ligas Camponesas quando também se fortaleciam as lutas operárias. Os Estados Unidos desenvolveram a “Guerra Fria” na América Latina por meio de golpes de Estado e instalação de ditaduras militares. A experiência da guerrilha cubana não tinha como ser reproduzida mecanicamente. As tentativas fracassadas, no entanto, expuseram as profundas contradições da luta de classes na América Latina. Os Partidos Comunistas estalinizados até a medula serviam à política da burocracia soviética de coexistência pacífica, embora o imperialismo estivesse na ofensiva com os meios econômicos, políticos e militares da “Guerra Fria”.

Os governos nacionalistas se tornaram um obstáculo à potência norte-americana ao alimentarem medidas de desenvolvimento nacional, para superar o enorme atraso econômico e social. A ideologia da “Guerra Fria” catalogou tais governos como tendentes ao comunismo. A campanha golpista acusava burdamente João Goulart de pretender criar uma “República Sindicalista”. Isso por que o governo nacionalista se assentava na política de colaboração de classes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). A ultradireita e direita burguesas enraizadas na economia agrária latifundiária e subordinadas à penetração do capital monopolista desde sempre refletiram os interesses do imperialismo. As Forças Armadas não têm como refletir a necessidade da independência nacional, uma vez que é uma criatura das relações de propriedade e da oligarquia dominante. A imersão do nacionalismo burguês inevitavelmente alimentou cisões no aparato de poder da burguesia.

O golpe de 1964 resultou da derrota da fração nacionalista que havia se formado no interior das Forças Armadas. A posição de João Goulart de não resistir ao golpe evitou uma guerra civil. A fração francamente pró-imperialista assumiu o poder na forma de ditadura militar. Restabeleceu-se uma unidade monolítica que implicou varrer os militares nacionalistas formados no período varguista. O movimento da classe média, que foi impulsionado no estado de São Paulo pelo governador Adhemar de Barros, apoiado pela Igreja Católica, sob a bandeira “Marcha da Família com Deus e a Liberdade”, evidenciou a orientação ultradireitista do golpe de 1964.

O governo do general Humberto Castelo Branco, de 1964 a 1967, prometeu realizar uma transição ao poder civil, no entanto, foi o prólogo de 21 anos de ditadura militar. A tomada do poder pelas Forças Armadas resultou imediatamente em repressão aos sindicatos e movimentos. Não pôde logo de início expor plenamente seu caráter ditatorial. A Junta Militar passou a ditar Atos Institucionais. Os quatro primeiros foram gradualmente cerceando as atividades da própria política burguesa: subordina o Congresso Nacional, extingue os partidos políticos, cria o sistema bipartidário e institui as eleições indiretas para governadores e impõe uma Constituição talhada pelos militares. Esse percurso dos quatro primeiros Atos Institucionais não havia ainda conseguido esmagar completamente as manifestações, principalmente estudantis. As greves operárias de Osasco e Contagem em 1968 confluíram com a resistência do movimento da juventude, dirigido pela União Nacional dos Estudantes (UNE). A ocupação de fábrica em Osasco foi o acontecimento da luta de classes mais importante no sentido da contestação à ditadura militar. Uma vez isolada, não teve como enfrentar a ditadura consolidada. A dissolução do Congresso da UNE, que se realizava de forma semiclandestina em Ibiúna (SP), e prisão de suas lideranças, marcaram o fim da resistência do movimento de massa.

O general-presidente Artur Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que concluiu a primeira fase de implantação do regime ditatorial. Estabeleceu-se a base jurídica de uma ditadura que passou a governar sem limite algum. Impunha-se pelo poder das armas uma disciplina de ferro à própria política burguesa e de eliminação de qualquer traço de liberdade sindical. Os órgãos de repressão – policiais e militares – foram autorizados a perseguir, prender, torturar, matar e ocultar corpos. É nesse momento que a ditadura militar assume características de regime fascista.

Anterior ao AI-5, já se esboçava a resistência armada de grupos foquistas, que foram se constituindo no processo de decomposição e divisão nas fileiras do estalinismo e do próprio nacionalismo pequeno-burguês. Estavam influenciados e motivados pela Revolução Cubana, pela orientação castro-guevarista e pela situação convulsiva na América Latina. A ditadura militar foi às últimas consequências para quebrar qualquer contestação ao seu poder. Depois da criação do Serviço Nacional de Informação (SNI), instituído em meados de 1964, a ditadura impôs a Operação Bandeirante (OBAN), vinculada ao Exército. Em seguida, vieram os DOI-CODI, em 1970, destinados a destruir a resistência armada. A ditadura chegou ao auge dos assassinatos, torturas e desaparecimentos.

Essa história marcada a sangue não tem como ser apagada. Mesmo alguns setores da política burguesa têm de se referir à ditadura militar a cada ano de seu aniversário. Os governos que vieram após o regime militar se mostraram indispostos ou incapazes de apurar e punir os crimes praticados sob a égide das Forças Armadas. Agora, Lula capitula, em meio às revelações do general Marco Antônio Freire Gomes e do brigadeiro Carlos de Almeida Baptista de que Bolsonaro conspirou para desfechar um golpe, negando-se a realizar demonstrações oficiais de condenação ao golpe de 64. O fato do golpe ter fracassado e as investigações contra Bolsonaro avançarem exigem expor as suas raízes históricas. A ultradireita bolsonarista, certamente, não se limita às altas patentes que procuraram impedir a posse de Lula. Um setor empresarial e uma camada de classe média deram claros sinais em favor de um golpe. O Partido Liberal (PL), que é a maior força no Congresso Nacional, e uma parcela significativa das igrejas evangélicas tiveram presença ostensiva nas articulações conspirativas. Constituiu-se um movimento antidemocrático a exemplo do que se passou em 1964, guardadas as devidas diferenças. Os militares que procuraram a via do golpe e o ex-presidente da República não apenas são defensores da ditadura militar como também de suas heranças que servem de guia na presente situação de profunda crise por que passa o Brasil.

Diante da negativa de Lula em retomar as denúncias aos crimes praticados pela ditadura, a CUT e movimentos populares se viram obrigados a realizar atos ultrarestritos em poucas cidades. Ao contrário, é preciso expor as raízes do golpismo bolsonarista que se encontram no movimento militar que levou ao golpe em 1964 e a 21 anos de ditadura. Essa posição política favorece a continuidade da ultradireita, que trabalha para montar uma contraofensiva, aproveitando das debilidades do próprio governo Lula. Distintamente, o Partido Operário Revolucionário alerta para a necessidade da classe operária lutar com seu programa próprio contra todas as variantes da política burguesa, e, em particular, contra a ultradireita que serve ao obscurantismo.